
(Foto: Designecologist/Pexel)
No pântano cultural em que nos atolamos, uma imagem fingida ainda valerá mais do que mil palavras sinceras. Por muito tempo
Quando você vê no horário nobre da TV um vídeo mostrando que ninguém mais pode confiar num vídeo, pode ter certeza de que a crise de credibilidade da imagem bateu no limite do insuportável, até mesmo para os profissionais de televisão. E é isso, rigorosamente isso, o que estamos vendo agora.
No domingo passado, o Fantástico pôs no ar este alerta: duvide do vídeo. Numa reportagem impecável (embora leve, informal e quase sorridente), a telerrevista da Globo mostrou que os recursos de inteligência artificial já conseguem fabricar cenas perfeitas com personagens que nunca existiram – ou, o que é pior, cenas mais do que convincentes com personagens que existem, mas nunca fizeram nada daquilo que se vê na tela. Sim, a crise de credibilidade é real e chega até nós como um terremoto. É bom pensar duas vezes, ou mais de duas, antes de acreditar nos filminhos ou filmões que se insinuam para os seus olhos. Você talvez escape das armadilhas. A grande maioria das pessoas, porém, continuará caindo em cada uma delas.
Antes de qualquer outra consideração, reconheça-se o mérito do Fantástico. O programa, que é inteiramente feito de pixels teve a coragem de expor a falseabilidade dos pixels. A ousadia se justifica. Apontar as fraudes digitais, que se banalizam aceleradamente, é o melhor caminho, e talvez seja o único, para resguardar a autenticidade que só a imprensa profissional é capaz de oferecer.
A confiabilidade da informação não poderá mais se lastrear no esmero plástico dos enquadramentos, mas na palavra de honra de quem gravou, de quem editou e de quem pôs no ar. O vídeo pode ser rudimentar – como aqueles que, trepidantes, esmiúçam a destruição em Gaza – e ser honesto, ou pode ter ares de refinamento – como alguns dos que, durante a pandemia, fizeram publicidade de um certo vermífugo – e não passar de mentira criminosa. Os olhos não poderão mais separar o falso do verdadeiro. O que importa não é mais a dosagem da luz ou o movimento estável da câmera do telejornal, mas o compromisso de quem assina embaixo. O padrão de qualidade não será mais técnico – terá de ser ético. O Fantástico sabe disso e aposta nisso, mas a massa de telespectadores ainda vai demorar para entender a gravidade do que está em curso.
Estamos numa transição que afetará em definitivo a nossa forma de contemplar e conhecer o mundo. A fotografia e o vídeo deixarão de ser registros confiáveis dos acontecimentos. Parece um detalhe desprezível dentro do vasto mundo da comunicação social, mas esse detalhe terá consequências monstruosas. Um close pode até divertir, encantar, emocionar, hipnotizar, pode até gerar lucros polpudos, mas não é mais prova de nada. A função recreativa das câmeras deglutiu a função documental que elas tinham. Só o que ainda merece alguma confiança, vale repetir, é a palavra (de honra), e mesmo essa se esfarela nas fantasmagorias fluorescentes dos passatempos públicos.
Tudo aconteceu muito rápido. Em 1991, no livro Vida e morte da imagem, Régis Debray escrevia que somos “a primeira civilização que pode julgar-se autorizada por seus aparelhos a acreditar em seus olhos”. Ele disse mais: “Uma foto será mais ‘crível’ do que uma figura e uma fita de vídeo do que um bom discurso”. O tom era de profecia, mas era também de cética: Debray criticava com acidez a fé nas imagens eletrônicas, apontando a inconsistência dessa fé profana.
Ele tinha razão. Hoje, a mesma civilização que achava “crível” sua videografia é chamada a duvidar dos próprios olhos. Mas ela terá força para duvidar do vídeo? Dificilmente. Será que ela deseja realmente duvidar do vídeo? Todos os sintomas disponíveis dizem que não. O mais provável é que a tal civilização ainda sucumba muitas e muitas vezes às manipulações grosseiras. O mais provável é que caia em armadilhas previsíveis e seriais, como vem caindo, para deleite dos extremistas, dos populistas, dos autocratas e dos espertalhões junkies que são donos de big techs. Em vez de duvidar dos olhos, as sociedades que aí estão parecem preferir ter prazeres – vis, vãos e vadios – com suas retinas cínicas.
Democracias em risco. Se você pensar um pouco, perceberá que, quando a função recreativa das câmeras deglutiu a função documental que elas um dia tiveram, deglutiu junto umas franjas consideráveis da razão e corroeu a qualidade do debate público. Manipulações cibernéticas ainda farão muito estrago.
Diante do que está vindo aí, as perversidades de Stalin, que mandou apagar o semblante de Trotsky da memória fotográfica da Revolução Russa e assim tapeou multidões de todos os continentes, parecerão uma travessura infantil. O problema hoje é de outra ordem. O falseamento não é mais exceção, mas a regra.
Nos nossos dias, já sabemos: um vídeo vale menos que um discurso e uma foto vale menos que uma figura. Mas como despertar a sociedade? Foi bom ver a denúncia no Fantástico, mas foi pouco. No pântano cultural em que nos atolamos, uma imagem fingida ainda valerá mais do que mil palavras sinceras. Por muito tempo.
Publicado originalmente no Estadão.
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Eugênio Bucci é Jornalista e professor da ECA-USP, Eugênio Bucci escreve quinzenalmente na seção Espaço Aberto
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