
Éder Santos
Jefferson Dias (Mestre Biriba)
A luta pela afirmação positiva da imagem do migrante em Roraima é uma luta pela garantia dos direitos humanos. São muitos os tratados e acordos internacionais assinados pelo Brasil no atendimento, na proteção e no acolhimento de migrantes e refugiados. A pedra angular da proteção internacional de refugiados é a Convenção de 1951 sobre o Estatuto dos Refugiados, marco legal que estabelece os direitos e deveres dos Estados.
Aproteção de refugiados, os direitos dos migrantes, a cooperação internacional e a promoção dos Direitos Humanos andam juntos, em um processo recíproco, pois o acolhimento ao “outro” é contribuição direta à nossa própria condição humana. Ignorar ou recusar o nosso dever enquanto nação vai na contramão do bom senso, pois a recusa do direito do outro é questão social e cultural superada em nações que prezam pelo multilateralismo. Países que se fecham para o acolhimento escondem faces do racismo e da xenofobia, camufladas até mesmo por pseudos políticas de tons culturais escravagistas.
O estado de Roraima é privilegiado em receber membros de outras nações como haitianos, cubanos, guianenses e venezuelanos. As razões para a migração são variadas, mas o que está em debate é como nos comportamos para cumprir nossos acordos. No caso do hermanos venezuelanos, temos uma oportunidade de conhecer melhor sua cultura e modo de vida, considerando a presença de povos indígenas e outros grupos culturais daquele país, que por condições impostas pela crise política e econômica que abalou a Venezuela, por meio do embargo americano e os governos nacionais, precisaram buscar apoio em países vizinhos como Colômbia e Brasil.
Assim temos no filme de curta duração de gênero documentário, intitulado: “Llneros em Boa Vista” uma oportunidade de perceber o quanto a música regional e caribenha do país vizinho constrói um pertencimento para além da fronteira. A estreia do músico profissional, Fernando Millán, na direção sensível do documentário é permeada de inovação, pois sua experiência com o segmento musical permite dialogar com a riqueza dos artistas que tocam e cantam suas canções com poesia e domínio da técnica. O canto, a música e a memória são características dos “Llnaeros”, que são cantores do campo, homens e mulheres de zonas rurais que no filme são protagonizados pelos migrantes em contexto urbano. “A vida é um campo”, diz com saudosismo um dos protagonistas no início da película.
A direção de fotografia, assinada pelo premiado cineasta Benjamin Mast (diretor do curta de ficção: A Bici de Ramón, 2023), que mora em Boa Vista, recebe belo tratamento em preto e branco, fenômeno estético e político que permite a nitidez da superação do povo migrante. Um mergulho visual em que se percebe poucas cores em um ambiente por vezes hostil ao migrante. Estes trabalhadores e trabalhadoras muitas vezes passam por situações de vulnerabilidade e até de humilhação em terras estrangeiras em virtude de uma parte da sociedade que ainda reproduz preconceitos. Com criatividade e lucidez, o curta metragem trata de superação, pois não são apenas as pessoas que migram, mas a equipe de filmagem também migra geograficamente, saindo imageticamente e fisicamente de zonas rurais venezuelanas para espaços de Boa Vista.
Os protagonistas compartilham diversos lugares da cidade, como praças, bares, calçadas, feiras e assim o filme vai revelando as paisagens urbanas da capital, alegradas com a arte e a esperança do povo venezuelano. Durante o filme, os artistas fazem sua arte acontecer com suas percussões, violão e canto de forma simples, afetiva e efetiva, pois tocam nos sentimentos telúricos pela memória e encantam a plateia com suas rimas e repentes em espanhol.
A música llanera venezuelana é uma expressão autêntica da cultura dos Llanos, região de vastas planícies que se estendem entre a Venezuela e a Colômbia. Este gênero musical é demarcado por uma sonoridade vibrante e ritmada, construída com instrumentos tradicionais como o cuatro (pequeno violão de quatro cordas), o arpa llanera e as maracas, que juntos criam uma harmonia envolvente e característica. O canto recitado ou canto de ordeño, comum na llanera, evoca a vida rural, os trabalhos do campo, o amor, a natureza e o orgulho do homem llanero. Os estilos mais conhecidos são o joropo e o pasaje, que alternam entre ritmos animados e melodias mais suaves e emotivas. O filme consegue captar essa emoção.
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As letras da música llanera são carregadas de poesia popular e sentimentos profundos, muitas vezes retratando o cotidiano dos vaqueiros, a saudade da terra natal, a força da mulher, a bravura e a honra. Esse gênero musical vai além do entretenimento: ele é um símbolo de pertencimento nacional e resistência cultural, sendo transmitido oralmente entre gerações. Por meio da música llanera, os venezuelanos celebram suas raízes, tradições e valores, consolidando-a como um dos pilares da cultura popular do país e um patrimônio imaterial de grande relevância para a América Latina. Vida e arte se entrecruzam.
O direito à cidade é, portanto, um direito humano coletivo que passa pelo acesso aos equipamentos e serviços públicos, assim como pela possibilidade de transformação de espaços para partilhas comuns de quem vive nessa cidade, enfrentando a mercantilização e a exclusão de territórios, das pessoas e da natureza. Assim “Llaneros” torna-se um curta pedagógico, que nos ensina sobre a importância da arte e dos espaços urbanos, de como a vida social pode ser melhor quando se respeita a diversidade, a cultura de todo e a memória afetiva de quem escolheu Boa Vista para viver.
Éder Santos é mestre e doutor em Geografia Cultural, cineasta, jornalista, sociólogo e presidente da Associação Roraimense de Cinema e Produção Audiovisual Independente, pesquisador do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Modos de Vidas e Culturas Amazônicas (GEP Cultura/UNIR), membro associado da Mostra Internacional do Cinema Negro (SP) e do Comitê Pró-cultura Roraima. E-mail: [email protected].
Jefferson Dias – (Mestre Biriba), é mestre em Preservação do Patrimônio Cultural pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN; Especialista em Filosofia da Religião (UERR), Pós-graduado em docência do nível Superior e Bacharel em Direito e Pós-graduando em Compliance, Governança Corporativa e ESG. Conselheiro Estadual de Promoção da Igualdade Racial do Estado de Roraima – CONSEPIRR, Membro do grupo de Estudo e Pesquisas em Africanidades e Minorias Sociais (UFRR), membro do Comitê Gestor da salvaguarda da Capoeira de Roraima e do Comitê Pró-Cultura Roraima, Membro da Federação Roraimense de Capoeira (FERRCAP), Mestre de Capoeira pelo Grupo Senzala e Fundador do projeto social Instituto Biriba – Educar para transformar.
O post “Llaneros” é um filme apaixonante sobre a cultura migrante em Boa vista, Roraima apareceu primeiro em Folha BV.