VITÓRIA MACEDO
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS)
Na infância, meninos costumam brincar com carrinhos, super-heróis e videogames. As meninas, por sua vez, brincam de casinha com fogãozinho, bonecas e suas roupinhas. Ao crescerem, eles frequentemente levam esses hobbies consigo, colecionam e gastam dinheiro com eles. Elas, quase nunca. Mas, quando o fazem, são criticadas e ridicularizadas. O argumento “se eles podem, elas também podem” tem servido de defesa para as colecionadoras de bebê reborn -os bonecos artesanais hiper-realistas que simulam bebês recém-nascidos.
“Quando a maioria das pessoas que praticam aquele hobby são homens, por mais esquisito que seja, é sempre respeitado e se transforma em algo normatizado”, diz a psicanalista Thais Basile, autora de “Atravessando o deserto emocional: Os impactos de fazer parte de uma família emocionalmente adoecida”.
Esse fenômeno não é recente, ainda que tenha viralizado há poucas semanas nas redes sociais. Há pelo menos 30 anos esses brinquedos surgiram nos Estados Unidos, com artistas transformando bonecas comuns em réplicas realistas. A riqueza de detalhes das artesãs, também chamadas de “cegonhas”, faz com que uma boneca possa chegar a quase R$ 10 mil no Brasil.
Nas redes sociais, mulheres aparecem trocando roupinhas de seus bebês reborn, dando mamadeira, levando para passear e algumas até os levam a hospitais. Grande parte pode ser encenação para gerar engajamento, o que tem dado certo.
O Rio de Janeiro chegou até a aprovar a criação do Dia da Cegonha Reborn. Mas em meio às curtidas nas postagens, o que mais se sobressai são as críticas a essas mulheres. São chamadas de loucas, de pessoas “que não têm o que fazer”, ou são aconselhadas a adotar um bebê de verdade. A questão é frequentemente levada para o lado da saúde mental que, segundo especialistas ouvidas pela reportagem, não é uma abordagem adequada.
“As mulheres são socializadas para serem maduras antes da hora. Não é à toa que tantas pessoas ficaram mexidas com esse fenômeno e as reações foram de ataque”, afirma Basile. “Ver quem teoricamente estrutura a sociedade, é o pilar do cuidado, agindo de forma mais infantilizada, pode ser desorganizador e pode levar a acessar desamparo.”
A psicanalista argumenta que o discurso que culpabiliza essas mulheres surge porque a sociedade busca controlar os corpos femininos por causa da capacidade reprodutiva. “O que aconteceria com a sociedade se mulheres começassem a cuidar apenas de pet, planta e reborn?”, questiona.
Para a antropóloga e professora da Universidade de Brasília (UnB) Debora Diniz, a discussão vai além das escolhas individuais das mulheres. “A crítica não é individualmente às mulheres, é sobre o que significa a construção e identificação desse desejo com essa mercadoria. É uma essencialização de gênero, é uma extensão de uma maternagem infantil com a boneca”, afirma.
Diniz também acredita que o argumento de que “não há nada demais” porque homens também brincam com objetos infantis mascara uma desigualdade. Para ela, essas comparações impedem um olhar crítico sobre comportamentos que são naturalizados para homens.
“O problema disso é que nós estamos enraizando aquilo que precisamos, a cada nova geração, estranhar para podermos ser mais livres das expectativas de destino”, diz. “Por que a nossa criatividade histórica para a construção de prazer, de elos, de vinculação e de aproximações precisa ser ainda mais reduzida à maternidade?”
Parte das críticas sobre os vídeos publicados nas redes sociais de cuidados com bebês reborn está relacionada à romantização da maternidade.
Segundo Priscila Cardoso, professora associada da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) e coordenadora do Projeto Yabás e Erês: maternidade(s) e coletivização dos cuidados, essas mulheres podem contribuir para uma deslegitimação da luta em relação à maternidade real, afirma. Afinal, bebê reborn não faz a mãe ficar sem dormir, não chora, não precisa se alimentar. “A gente já tem cobrança suficiente por uma maternidade perfeita”, afirma.
“Não há ali o exercício da maternidade. Há uma fantasia que é orientada por aspectos que dizem respeito a questões emocionais, mas também, e de maneira muito forte e perversa, a como essa sociedade lida com a maternidade e lida com as mulheres”, ressalta Cardoso.
Em meio a fantasias de bebês calminhos e de uma maternidade ideal, ter um boneco como esse pode ser uma forma de viver o desejo de ser mãe sem passar pelo peso e desafios da maternidade real. “Mulheres querem ter filhos, mas elas não querem ser a mãe porque a maternidade é muito pesada, muito injusta, muito desigual. Às vezes, é impossível de sustentar. E o bebê reborn denuncia um pouco isso também”, afirma Vera Iaconelli, psicanalista e colunista da Folha de S.Paulo. “O problema é tratar boneco como bebê e bebê como boneco. Quando acontece, estamos falando de loucura no primeiro caso e negligência no segundo”, diz.
No fim, as criadoras de conteúdo sobre bebês reborn, suas colecionadoras e as cegonhas demonstram amar aquele objeto de cuidado. Basile, a psicanalista, defende uma abordagem mais analítica e menos condenatória. “É preciso um trabalho de conscientização muito sério e não culpabilizador sobre tudo isso, para entender as denúncias sociais que este tipo de comportamento faz.”