
(Foto: StockSnap/Pixabay)
A estudante Bruna Oliveira da Silva, de 28 anos, foi morta após desaparecer no dia 13 de abril, em São Paulo, quando voltava para casa. Em vez de discutir os problemas sociais que o caso evidencia, veículos jornalísticos normalizam o fato em busca de likes nas redes sociais
Mais um dia rolando o feed do Instagram. De repente, um post com a foto de uma moça sorridente, sobre um fundo de cor roxa, chama minha atenção. No canto inferior direito da imagem, um detalhe em forma de alvo mostra a cena em que uma mulher parece ser seguida por um homem na rua. Abaixo, o título: “Do desaparecimento à tragédia: a linha do tempo do caso da estudante da USP”. Para completar a descrição da imagem, a marca da empresa jornalística UOL. Era a capa de um carrossel, como se denomina esse tipo de postagem, sobre o caso mais recente de violência contra a mulher a ganhar visibilidade na mídia brasileira.

(Reprodução de postagem do UOL no Instagram, em 24/04/2025.)
Ao deslizar o dedo sobre a sequência de oito cards com formato e linguagem adaptados às redes sociais, o que temos é um resumo da história com várias fotos da vítima em diferentes fases da vida, vídeos de câmeras de segurança mostrando a abordagem do homem e o retrato do suspeito que havia sido encontrado morto pela polícia. Ali temos uma espécie de arremate da cobertura que se dava há dias e alimentava a curiosidade do público com indícios do que poderia ter ocorrido com Bruna Oliveira da Silva, após seu desaparecimento em 13 de abril.
Nos comentários, entre indignação, conjecturas de todo tipo e até gente creditando a tragédia ao destino, conselhos às mulheres de que tenham carro ou só se locomovam pela cidade usando a categoria black (a mais cara) de um conhecido aplicativo — “não é mais luxo, é necessidade para viver” —, além da reivindicação de ônibus e até de ruas especiais somente para mulheres. Vale lembrar que em algumas capitais, como no Rio de Janeiro, já há alguns anos existem vagões exclusivos para mulheres no metrô e no trem em horários de pico. Agora será a vez do VLT.
Em uma busca rápida pelo feed do UOL e de outras empresas jornalísticas que noticiaram o fato em seus perfis no Instagram (G1, CNN Brasil, Metrópoles e Folha de S. Paulo, para citar alguns exemplos nacionais), a evolução do caso pôde ser acompanhada em mais ou menos postagens ao longo dos dias. Cada publicação tentava capturar a atenção do público a partir dos desdobramentos da notícia, fossem relevantes ou não, como a nota de solidariedade divulgada pela universidade em que a estudante fazia pós-graduação, os movimentos da investigação policial ou uma entrevista da mãe de Bruna pedindo justiça num protesto organizado pelos colegas da vítima.
Não é mais um caso isolado
É claro que a violência sofrida por Bruna em uma avenida de grande circulação na maior capital brasileira deve ser noticiada, e com destaque. A questão é que tragédias como essa não podem ser tratadas como o caso isolado de violência de gênero do mês ou da semana. Se, em um primeiro momento, a notícia é capaz de nos entristecer e indignar, na medida em que é atualizada como um mero folhetim, sem qualquer contextualização ou responsabilização do poder público e da própria sociedade, ela não serve para nada além de satisfazer o interesse mórbido de parte da audiência e a sanha algorítmica por engajamento das empresas jornalísticas, que dependem cada vez mais das plataformas.
Além de tremendamente tristes, casos como esse evidenciam o que pesquisas revelam ano após ano: o Brasil é um dos países mais inseguros do mundo para as mulheres. Enquanto a média global de mulheres que sofreram alguma violência ao longo da vida por parceiro ou ex-parceiro é de 27%, conforme relatório de 2021 da Organização Mundial da Saúde (OMS), no país essa porcentagem é de 32,4%, de acordo com pesquisa do Datafolha encomendada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Somente nos últimos 12 meses, 21,4 milhões de brasileiras sofreram algum tipo de violência. Esse é o maior índice da série histórica da pesquisa “Visível e Invisível: a Vitimização de Mulheres no Brasil”, iniciada em 2017 pelo Fórum.
A situação vivida por Bruna não foi praticada por parceiro ou ex-parceiro nem aconteceu no ambiente doméstico, mas está relacionada a outros números alarmantes trazidos pela pesquisa. Segundo a edição 2025 do estudo, a rua é o espaço onde ocorrem mais assédios e 5,3 milhões de mulheres, ou 10,7% do total da população feminina do país, relataram ter sofrido abuso sexual e/ou ter sido forçada a manter relação sexual contra a própria vontade nos últimos 12 meses. Ou seja, uma a cada 10 mulheres brasileiras.
Outra cobertura é possível
Mesmo com avanços na legislação voltada à proteção das mulheres, como a Lei Maria da Penha que acaba de completar 18 anos e a Lei do Feminicídio que chegou a uma década em março de 2025, os números de violência de gênero no Brasil seguem aumentando. Diante de uma realidade tão grave, é inadmissível que grandes veículos de comunicação brasileiros abdiquem do compromisso com a responsabilidade social inerente ao jornalismo, como prevê o Código de Ética do Jornalista Brasileiro e qualquer cartilha sobre a profissão.
Há um contexto em torno da violência de gênero que passa por segurança pública, justiça, desigualdade social, machismo estrutural, cultura do estupro e uma série de outras questões que precisa ter lugar na cobertura desses casos. Isso inclui apontar e cobrar os atores políticos e sociais envolvidos, saindo da superfície normalizadora da linha do tempo e da mera reprodução da fala do delegado responsável pela investigação. Desde a apuração até a publicação da notícia no veículo informativo — mas também, e cada vez mais principalmente, nas páginas desses meios nas redes sociais —, é imperativo adotar uma abordagem responsável, complexa e verdadeiramente ampla sobre esse tema. E aqui não me refiro à quantidade, mas à qualidade do conteúdo informativo produzido a partir desses casos.
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Raphaelle Batista é jornalista, doutoranda do PPGJOR/UFSC e pesquisadora do objETHOS
O post O engajamento que não salva ninguém: violência contra a mulher e a (ir)responsabilidade social do jornalismo apareceu primeiro em Observatório da Imprensa.