A imprensa e as perguntas sem resposta nas enchentes gaúchas de maio de 2024

Vista aérea de Porto Alegre que a um ano foi atingido por temporais que afetou mais de 400 municípios gaúchos, tiveram bairros inteiros alagados. (Foto: Joédson Alves/Agência Brasil)

Resistirão a uma nova enchente os consertos dos danos causados pelas cheias de maio do ano passado no sistema contra inundações de Porto Alegre? Nestes últimos 12 meses, sempre que cai uma chuva forte na capital dos gaúchos há problemas de alagamento de ruas e avenidas, especialmente na Zona Norte, também conhecida como Quarto Distrito. Daí que, sempre que surge uma oportunidade, faço a pergunta sobre a qualidade dos reparos. O aniversário da tragédia é uma oportunidade. Dias após a enchente do ano passado fiz o post Sistema contra as cheias de Porto Alegre é velho, mas funcionava. Precisa ser consertado. O sistema foi erguido em 1970 e se estende por 68 quilômetros. É formado por diques, o muro da Avenida Mauá (uma parede de três metros de altura com 2,6 quilômetros de extensão e 14 comportas que são fechadas na subida das águas do Guaíba, protegendo a área central da cidade) e 23 estações de bombeamento. Funciona assim: os diques, o muro e as comportas da Mauá mantêm as águas do rio fora da cidade, e as casas de bombas mandam para o Guaíba as águas da chuva e dos esgotos pluviais.

Em maio do ano passado aconteceu o que vários técnicos e ecologistas temiam. As águas do Guaíba subiram 5,61 metros, bem acima da marca de 4,76 metros da histórica enchente de 1941, que até então era a maior já registrada em Porto Alegre. O excesso de água, somado à falta de manutenção, colapsou o sistema contra as cheias da cidade. Resultando no alagamento do Centro Histórico e outros bairros e deixando submersos a estação rodoviária e o Aeroporto Salgado Filho. As enchentes de maio de 2024 e as de setembro e novembro de 2023 deixaram 184 mortes, 25 desaparecidos, 806 feridos e 2.388.255 pessoas afetadas em 478 dos 497 municípios gaúchos. Um aviso. Tenho tido o cuidado de manter os dados sobre o sistema contra as enchentes de Porto Alegre atualizados para facilitar a vida do leitor. Por entender que o foco que os jornalistas precisam ter é na qualidade dos consertos. Voltando a nossa conversa. Um dos problemas que aconteceram com as casas de bombas em maio passado foi a falta de energia elétrica, que causou o desligamento dos motores e o consequente alagamento da cidade. Para solucionar o problema foram colocados geradores que deveriam ser ligados automaticamente quando faltasse energia elétrica. No início de 2025 houve uma chuva forte em Porto Alegre. Em sete casas de bombas faltou energia e os geradores não foram acionados automaticamente devido a um desentendimento técnico entre as empresas contratadas para prestar o serviço e o Departamento Municipal de Águas e Esgoto (Dmae). A história está disponível na internet.

Alerto para o seguinte. Uma coisa é um repórter ligar para uma fonte oficial e colocar a informação que obteve na matéria. Outra coisa é ir ao local para verificar com os próprios olhos o que exatamente está acontecendo. Não estou colocando em dúvida as informações oficiais. Mas observando que esta informação é obtida com uma fonte oficial que entra em contato com o encarregado da obra, geralmente um empreiteiro ligado a uma empresa terceirizada. Este faz o seu relato para a fonte oficial, que a repassa para o repórter. É um caminho longo demais para uma informação percorrer até o ouvido do jornalista. Nada substitui a presença do repórter no local onde as coisas estão acontecendo. Seja nas obras de reparação do sistema contra as enchentes de Porto Alegre ou nos consertos das rodovias, pontes e demais estruturas que foram danificadas pelas cheias. Os responsáveis pelas redações precisam ter em mente que não estamos relatando para o nosso leitor uma acontecimento rotineiro. Não, nós estamos relatando o novo normal do clima causado pela depredação da natureza. Portanto, quanto mais exatos forem os nossos relatos, melhor é para todo mundo. Tenho mais de 40 anos de lida como repórter, fiquei 30 e poucos trabalhando em redação. Sei que, nos dias atuais, jornais, rádios, TVs e outras plataformas de comunicação trabalham com um número muito reduzido de jornalistas. Dentro dessa realidade, não há como mandar gente para cada local do fato. Ainda mais para relatar um “buraco de rua”, como são chamadas nas redações as matérias menos relevantes. Mas, muitas vezes, um buraco de rua, como é caso de um gerador que deveria ser ligado automaticamente e não foi, pode causar um enorme dano, alagando ruas, avenidas e prédios. Lembro que entre a versão do fato feita pela fonte oficial e o leitor estamos nós, jornalistas, que temos o dever de duvidar de tudo que ouvimos e vemos. Esta é a regra de ouro do jornalismo.

As mudanças climáticas são um fato. Elas estão mexendo com todos os ramos da vida humana. E a existência das empresas de comunicação como conhecemos vai depender da solução do problema da escassez de jornalistas nas redações. A maneira como irão resolver esse problema definirá o seu futuro. Durante muitos anos escrevemos em nossas matérias que isso iria acontecer. Pois bem. Está acontecendo e precisamos explicar direitinho para o leitor. Olha, o que aconteceu no Rio Grande do Sul não é apenas um problema dos gaúchos. É o cartão de apresentação de uma nova era. Logo, é do interesse de todos. Lembro-me que na década de 70 tive uma longa conversa, que nunca esqueci, com o ecologista José Lutzenberger (1926 – 2002), que recém tinha chegado da Alemanha. Ele falava com muitos detalhes sobre o futuro do meio ambiente. Na época, achei era exagero. Não era.

Publicado originalmente em Histórias Mal Contadas.

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Carlos Wagner é repórter, graduado em Comunicação Social — habilitação em Jornalismo, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul — Ufrgs. Trabalhou como repórter investigativo no jornal Zero Hora (RS, Brasil) de 1983 a 2014. Recebeu 38 prêmios de Jornalismo, entre eles, sete Prêmios Esso regionais. Tem 17 livros publicados, como “País Bandido”. Aos 67 anos, foi homenageado no 12º encontro da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (ABRAJI), em 2017, SP.

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