“Caçadas de Pedrinho”, de Monteiro Lobato, de volta ao STF

(Foto: Emerson Leal STJ/Flickr)

Contextualização

Em 2010, Antônio Gomes da Costa Neto, técnico em gestão educacional em Brasília e mestrando em Educação das Relações Raciais na Universidade de Brasília (UnB), acusa a Secretaria de Educação do Distrito Federal de desrespeitar os critérios de seleção de livros literários preconizados pela legislação antirracista ao permitir que Caçadas de Pedrinho [1], livro de Monteiro Lobato publicado em 1933, fosse disponibilizado pelo Programa Nacional Biblioteca na Escola (PNBE) a bibliotecas de escolas estaduais do Distrito Federal. De acordo com Costa Neto, no livro, Tia Nastácia é xingada de “macaca de carvão”, o que seria uma clara demonstração de racismo.

Em junho de 2010, juntamente com a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), Costa Neto solicita ao Conselho Nacional de Educação (CNE) explicações que justificassem a disponibilização de Caçadas de Pedrinho às referidas bibliotecas. Em resposta favorável a seu questionamento, o Conselho Nacional de Educação considera que um eficaz programa antirracismo deveria ser implementado nas escolas públicas de todo o país. À época, manifestações na imprensa em geral afirmaram que isso representava a instituição de censura no Brasil. Em agosto do mesmo ano, um novo parecer do Conselho Nacional de Educação emitiu outra resposta, dessa vez desfavorável, ao questionamento.

Em novembro de 2011, Costa Neto e o Instituto de Advocacia Racial (IARA) entram no Supremo Tribunal Federal com um mandado de segurança exigindo que a distribuição de Caçadas de Pedrinho fosse revista em função das novas demandas da sociedade em termos de relações raciais – ou seja, o livro não deveria ser distribuído. Caso fosse, deveria conter uma advertência de que, de acordo com Costa Neto, dissemina conteúdo racista. Além disso, se livros de Lobato fossem distribuídos ao sistema escolar, deveria ser explicitado aos professores que tais livros deveriam se prestar a demonstrar, nas aulas em que fossem utilizados, como, ainda de acordo com Costa Neto (2015, p. 25), o racismo tem sido parte integrante da sociedade brasileira. Dessa vez, não apenas a imprensa, mas também a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e a Academia Brasileira de Letras (ABL) reagiram, acusando o Ministério da Educação e Cultura de adotar posição excessivamente politicamente correta ao se curvar às exigências de Costa Neto e do Instituto de Advocacia Racial ao determinar que o livro contivesse uma nota que informasse “presença de estereótipos raciais”. Alguns artigos favoráveis a tais exigências, porém, começaram a aparecer. Costa Neto e o Instituto de Advocacia Racial (Iara), por sua vez, consideraram a advertência insuficiente e entraram com novo mandado de segurança, exigindo que os professores do sistema público recebessem treinamento para detectar e denunciar o racismo. No Supremo Tribunal Federal, após manifestações favoráveis e contrárias às exigências, não houve acordo e o Tribunal rejeitou a solicitação de exclusão do livro das bibliotecas das escolas públicas, mas, posteriormente, emitiu parecer assegurando que o sistema escolar deveria prestar orientações sobre relações étnicas e raciais. De lá para cá, a imprensa e demais formas de mídia são inundadas quase que diariamente por matérias de meia dúzia de especialistas em literatura (com “l” minúsculo, mesmo) e mais de uma centena de curiosos, na melhor das hipóteses, e de caçadores de like, na mais realista das hipóteses – todos, porém, bons gatekeepers do sistema –, afirmando que Lobato e sua obra são racistas, sim. Dentre a avalanche de matérias citando o nome de Lobato, uma se destaca: o anúncio de que, no mês passado, o Supremo Tribunal Federal reabriu o processo contra Caçadas de Pedrinho

O que, de tão ameaçador, encerra Caçadas de Pedrinho?

Resultante do acréscimo de algumas aventuras ao livro A Caçada da Onça, do mesmo autor, publicado há exatos 100 anos, O livro Caçadas de Pedrinho conta uma estória que gira em torno das atitudes que as personagens do Sítio do Picapau Amarelo tomam ao descobrir que havia uma onça rondando o local e de suas consequências. Pedrinho e Narizinho, às escondidas de suas responsáveis, Dona Benta e Tia Nastácia, organizaram uma expedição para caçar a onça! A estória se presta a ensinar as crianças (e adultos) a respeitarem os animais, demonstrando a preocupação do autor com a causa animal quase um século antes que esta rendesse likes e reconhecimento a quem a ela se dedica.

A preocupação de Lobato com os animais aparece esparsa e implicitamente na obra do autor, mas há um caso curioso que a explicita. Deixemos que ele mesmo o conte:

Sôbre o livro de S. Cipriano tenho uma confissão a fazer. Todos os editores lançavam essa obra, porque na opinião dos livreiros da epoca, “era o que o povo queria”. E como eu me fizera editor, resolvi lançar também o meu S. Cipriano. Mandei comprar o livro para ver o que era. Oh, pura feitiçaria de macumbeiros. Uma coisa sordida. E cheio de crueldades, de sapo de boca costurada, de pombinhos cegados com ferro quente. Isso me decidiu a lançar uma nova edição – uma edição isenta daquelas crueldades para com os pobres animaizinhos. E mexi no texto clássico, fazendo as necessarias alterações. Onde dizia: “… e pega então um sapo, costura-lhe a boca e joga-o numa fogueira”, eu pus: “… e pega então um sapo, risca-lhe uma cruz nas costas e joga-o numa lagoa bem funda” – exatamente o que o sapo queria. Ao pombinho também libertei da cegueira, substituindo-a por uma gentileza qualquer.

Tirei desse livro uma edição relativamente grande, e vendi-a com muita facilidade. Mas por fim o povo deu de desconfiar que aquele S. Cipriano não era o “legítimo”: suas receitas não davam os mesmos resultados das antigas… (Apud D’Onofrio, 2022, p. 181, ortografia não atualizada.)

Curiosamente, no início do século XXI, em uma época em que a proteção animal adquire importância sem precedentes, o livro Caçadas de Pedrinho passa a ocupar espaço na mídia não por seu positivo e relevante caráter pedagógico, mas por ser alvo de um processo que o acusa de racismo e exige que seja retirado do alcance das crianças, conforme a cronologia acima informa. O motivo, uma frase cirurgicamente recortada: “Tia Nastácia, esquecida dos seus numerosos reumatismos, trepou que nem uma macaca de carvão pelo mastro de São Pedro” (Lobato, 2019, p. 38.). Tendenciosamente, o mesmo bisturi não recortou, para trazer aos holofotes, a frase mais expressiva de Caçadas de Pedrinho, que aparece no espaço reservado à moral da estória – a última linha do livro – e é proferida por ninguém menos do que Tia Nastácia:

“Agora chegou minha vez. Negro também é gente, sinhá…” (Lobato, 2019, p. 79.).

Imagine-se o peso de uma afirmação como essa em 1933, escrita com todas as letras e para quem quisesse – e também para a provável maioria, que não queria – ler e ouvir nos serões de leitura para crianças, apenas 45 anos após a abolição da escravatura no Brasil. Era preciso ter muita coragem, impetuosidade e convicção para afirmar – talvez pela primeira vez na história do Brasil – que negro é tão gente quanto as demais pessoas. Isso explica, em parte, por que Lobato e seus livros foram desde sempre tão perseguidos quanto agora. Quando o autor ainda estava vivo, as crianças eram instadas pelas cuidadosas professoras – em troca de boas notas – a levar os livros de Lobato que por ventura tivessem em casa para serem queimados em uma enorme fogueira após a missa de domingo nas igrejas católicas. O que mudou nesses quase 100 anos é que, agora, quem erige a fogueira com os livros de Lobato não são mais as boas mocinhas da classe média branca egressas do curso Normal e a Igreja Católica, e quem deve lançá-los à fogueira não são mais as obedientes crianças que tinham acesso à educação formal – brancas, por certo. Como as coisas mudam! Porém algo não muda: a esperteza de quem flerta com a censura e a obtusidade dos “inocentes úteis” que apoiam esses amantes da censura. Resta-nos sonhar que os espertos e os obtusos sejam capazes de abrir o site de busca de seus iPhones e, parando ali mesmo pelo site da Wikipedia, consultem o que é macaca de carvão. Espantados, descobrirão que não se trata de um xingamento cunhado por Monteiro Lobato ou seus contemporâneos para destilar ódio e desprezo pelas pessoas de etnia negra. Trata-se, sim, de uma espécie muito comum de macaco da Mata Atlântica – na época em que a mata e os animais ainda existiam em profusão – denominado cientificamente como Brachyteles. Na língua popular, macaco de carvão e, no português derivado de línguas indígenas dessa região, muriqui, buriquim, buriqui, mariquinha, mariquina, muriquina e muriquinha.

Como é amplamente sabido, quando alguém está pulando ou subindo em algo, é comum se referir a esta pessoa como macaca. Quem nunca ouviu uma mãe ou avó chamar a atenção de uma criança agitada, comparando seu comportamento ao de um macaco?! Da mesma forma, Lobato costumava comparar ao macaco todo personagem seu que, com destreza (a destreza de um macaco) saltava algo, pulava ou subia em algo – fosse esse personagem negro ou branco. O agravante na frase pinçada de Caçadas de Pedrinho que tornou o livro (e seu autor) réu na corte suprema da Justiça brasileira foi o termo ter sido usado no feminino (macaca) e acrescido do avassalador xingamento “de carvão”, como referência – asseveram os espertos e obtusos – à etnia negra. Pois bem! Não fossem tão espertos e obtusos, nem precisariam se afastar da Wikipedia para tomar conhecimento de que o termo tupi muri’ki (e seus derivados) significa “gente que bamboleia, que vai e vem” e que o simpático muriqui tem a pelagem alaranjada (https://pt.wikipedia.org/wiki/Muriqui). Portanto, ao comparar o modo de Tia Nastácia subir no mastro de São Pedro com o modo como uma macaca de carvão ou muriqui sobe (em uma árvore, por suposto), Lobato faz uso de uma metáfora para contar que Tia Nastácia trepou no mastro de São Pedro bamboleando, ou seja, balançando o corpo de uma lado para o outro. Acrescente-se, ainda, a informação constante da Wikipedia de que a fêmea do gênero Brachyteles tem o ventre avantajado, ou seja, ao escrever que “Tia Nastácia, esquecida dos seus numerosos reumatismos, trepou que nem uma macaca de carvão pelo mastro de São Pedro”, Lobato faz com que o narrador, indiretamente, descreva o formato do corpo de Tia Nastácia: ela tinha o ventre avantajado, o que fazia com que seu movimento de um lado para o outro fosse ainda mais pronunciado. Um pouco de conhecimento popular ou um dicionário qualquer e alguma capacidade mínima de discernimento teriam auxiliado nossos magistrados a poupar seu tempo e uma boa soma do dinheiro do contribuinte – e que esforços um pouco de conhecimento e bom senso não teriam poupado aos demais envolvidos?!

Considerando, porém, que a frase usada por Lobato há quase cem anos, no contexto atual, pode vir a assumir diante de olhos e ouvidos muito aguçados, mas pouco instruídos, conotações racistas, por que não substituir a locução adverbial de modo “como uma macaca de carvão” por “balançando de um lado para o outro”? poderiam questionar aqueles que nada entendem de Literatura (enquanto construção artística de texto) e direitos autorais. A resposta é bem simples: porque a descrição indireta do formato do corpo da personagem e a metáfora desapareceriam, provocando a perda do caráter literário do texto, e porque a Constituição Federal do nosso país estabelece o direito personalíssimo, garantindo que a alteração de um texto só pode ser feita pelo próprio autor ou por alguém por ele autorizado (art. 5º, XXVII). Além de incorrer em ilegalidade, a alteração do texto empobrece as possibilidades de aprendizagem da língua por meio da Literatura ao eliminar a oportunidade de reconhecimento não apenas da metáfora (que só notaram aqueles que, de fato, sabem ler), mas também da polissemia – a propriedade linguística responsável pela possibilidade de que uma mesma palavra ou expressão seja utilizada com diferentes significados.

Além disso, perde-se a dimensão histórica da língua ao se deixar de perceber que palavras e expressões que hoje assumem determinado significado ou conotação, em épocas passadas, assumiram diferentes significados e conotações. Por fim, perde-se a oportunidade de ensinar a importância do contexto (interno ao texto e externo a ele) para a atribuição de sentidos coerentes ao que se lê ou escuta. Quantas oportunidades de aprendizado sobre tantos e tão importantes temas nossas crianças perdem quando permitimos que textos sejam impedidos de chegar até elas ou sejam reescritos a fim de se expurgar deles possibilidades de leitura que apenas mentalidades preconceituosas (devido a sua obtusidade ou tendenciosidade) são capazes de fazer?! E quantas crianças (e adultos!) serão privadas de ler, preto no branco, que “negro também é gente” e que isso já era anunciado no Brasil em 1933?! Por fim, apenas por ora, quem luta para impedir que um livro com uma mensagem tão incisiva e necessária quanto esta chegue às mãos e mente do jovem leitor brasileiro milita de que lado?

Para análise mais aprofundada sobre a relação atualmente estabelecida entre o criador da literatura infantil genuinamente brasileira e o racismo, sugere-se a leitura dos artigos “Contradições em análises da obra infantil de Monteiro Lobato” e “Caçadas de Pedrinho ou a guerra de comandos e símbolos” (no âmbito da Literatura Infantil) e o livro Entre metafísica, distopia e mecenato (no âmbito da Literatura Adulta). Outras referências podem ser encontradas no trabalho de pesquisa desenvolvido pelo grupo Observatório Lobato (http://oblob.fflch.usp.br/). 

Referência das citações e sugestões de leitura

BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 1990.

COSTA NETO, A. G. DA. “A desconstrução do racismo através de Monteiro Lobato: uma análise do caso ‘Caçadas de Pedrinho’”. Caderno de Letras, n. 25, p. 15-36, 31 dez. 2015.

D’ONOFRIO, Silvio Tamaso. “Um artigo ‘inédito’ de Monteiro Lobato”. In: Santana-Dezmann, Vanete; Milton, John; D’Onofrio, Silvio Tamaso. Monteiro Lobato: Novos Estudos. III Jornada Monteiro Lobato. Alemanha: Oxalá Editora, 2022. pp. 181–182. ISBN 9783946277644

FERREIRA, Filipe Augusto Chamy Amorim. “Caçadas de Pedrinho ou a guerra de comandos e símbolos”. In: Santana-Dezmann, Vanete; Milton, John; D’Onofrio, Silvio Tamaso. Monteiro Lobato: Novos Estudos Alemanha: Oxalá Editora, 2022. pp. 67–83. ISBN 9783946277644

LOBATO, José Bento Monteiro. Caçadas de Pedrinho. São Paulo: Ciranda Cultural, 2019. 

SANTANA-DEZMANN, Vanete. “Contradições em análises da obra infantil de Monteiro Lobato”. In: Santana-Dezmann, Vanete; Milton, John; D’Onofrio, Silvio Tamaso. Para Compreender Monteiro Lobato. II Jornada Monteiro Lobato. Alemanha: Oxalá Editora, 2021. p. 122. ISBN 9783946277583

SANTANA-DEZMANN, Vanete. Entre metafísica, distopia e mecenato. Inclui a primeira edição de O presidente negro ou O choque das raças, de Monteiro Lobato. São Paulo: Os caipiras, 2021. ISBN 9798395564375

Notas

[1]

Para conhecer e entender o livro, leia: Ferreira, Filipe Augusto Chamy Amorim (2022). “Caçadas de Pedrinho ou a guerra de comandos e símbolos”. In: Santana-Dezmann, Vanete; Milton, John; D’Onofrio, Silvio Tamaso. Monteiro Lobato: Novos Estudos. III Jornada Monteiro Lobato. Alemanha: Oxalá Editora. pp. 67–83. ISBN 9783946277644

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Vanete Santana-Dezmann é pesquisadora, professora, tradutora e editora. É corresponsável pelas Jornadas Monteiro Lobato e Encontros com Lobato, juntamente com John Milton, organizadas na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Sociais da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP) e autora de vários artigos e livros. Atualmente, é pesquisadora colaboradora do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (IEA-USP). Tem pós-doutorado em Estudos da Tradução (USP), com estágio de pesquisa no Goethe-Museum de Düsseldorf; doutorado em Teorias de Tradução (UNICAMP), com estágio de pesquisa na Universidade Livre de Berlim, e mestrado na mesma área (UNICAMP). É bacharel e licenciada em Letras pela UNICAMP. Como professora de Tradução na Universidade de Mainz, na Alemanha, desenvolveu o projeto de tradução do livro Reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato, para a língua alemã.

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