A guerra em 8 cenários

(Cartaz – https://48.mostra.org/imprensa)

Por que a guerra? É uma pergunta para a qual dois diretores, o israelense Amos Gitai de 74 anos e o iraniano de 67 anos, Mohsen Makhmalbaf, tentam encontrar a resposta. Os documentários Por Que a Guerra? e Aqui as Crianças não Brincam Juntas estão disponíveis na 48ª Mostra de Cinema Internacional e São Paulo, que começa esta quinta-feira, dia 17 e continua até 30 de outubro (https://48.mostra.org).

Por Que a Guerra? foi boicotado no Festival de Veneza e contestado por uma carta assinada por 300 diretores e atores que afirmavam que o filme recebeu patrocínio de empresas que financiam o apartheid, a ocupação da Cisjordânia, o genocídio.  Amos Gitai, um pacifista que há muito tenta o diálogo entre Israel e Palestina, resistiu, garantiu que não havia recebido qualquer subsídio do Estado de Israel. E exibiu seu filme. Agora, a sua pergunta está rodando o mundo. Por que a guerra?

Cenas da guerra na Antiguidade entre romanos e judeus abrem o documentário, que segue com uma carta da atriz Irène Jacob ao diretor, lida por ela, questionando as imagens da guerra da TV. Gitai se recusa a mostrar essas imagens de selvageria e destruição, estupros e assassinatos, porque isso só daria mais vontade de guerrear dos dois lados. A iconografia prolonga a guerra.

A força do filme está na correspondência aberta nos anos 1930 entre Albert Einstein (Micha Lescot) e Sigmund Freud (Mathieu Amalric), ambos tentando entender e evitar a guerra. As cartas são entrecortadas por imagens das instalações em Israel sobre o ataque do Hamas a um kibutz em 7 de outubro de 2023 e pôsteres pedindo a volta dos cerca de 100 reféns vivos, Bring Them Back. 

Como todas as guerras se parecem, as cartas poderiam ter sido trocadas hoje, quando Freud explica que a humanidade é movida por dois instintos, o da vida e sensualidade, Eros, e o da morte e destruição, Tanatos. Não há um sem o outro, e a guerra serve aos dois. Nossa civilização contém o mal em si, veio com defeito, podemos nos salvar pela cultura, que também contém o melhor e o pior, mas é o que nos resta.

Aqui as Crianças não Brincam Juntas entrevista pessoas comuns em Jerusalém, judeus, cristãos, palestinos, brancos, negros, civis que só querem a paz. Um deles, Ali, um afro-palestino que saiu de 18 anos de prisão depois de lutar pela libertação da Palestina, agora é guia turístico e só quer conversar ou saber da vida e das intenções de pessoas comuns ao seu redor. Mas não trocaria toda a Europa por uma esquina de Jerusalém. Outro, o judeu pacifista Benjamin, nutre o mesmo amor por Jerusalém e recorda o tempo em que palestinos, cristãos e judeus conviviam em paz, mas isso foi antes do ódio tomar conta das pessoas. Judaísmo é uma religião de conversa e troca, ele diz e lastima, a paz é uma palavra perdida.

Há citações como “as ruas são feitas de pedra, mas os corações, não”, conflitos de jovens palestinos que não podem se apaixonar por judeus e vice-versa, recados de “my sister is not for you”, “violência não é uma escolha pessoal”.

O Vento Sopra Através dos Túmulos é um documentário em preto e branco sobre a guerra fratricida na Iugoslávia, a separação de sérvios e croatas. Travis Wilkerson, diretor americano independente, escolheu filmar na cidade turística de Split, cujo forte medieval ladeando um penhasco já foi locação de Game of Thrones. O detetive Ivan Peric é o personagem principal, porque ali acontece uma série de homicídios de turistas que ele próprio detesta, tamanha a sujeira e desordem fazem na cidade – um deles foi morto com uma réplica da espada de Game of Thrones.

Wilkerson aproveita para destrinchar a história de Split no século passado, com a Croácia independente ligada ao partido nazista local Ustase em 1941. E o documentário foca inúmeras inscrições que persistem pela cidade da suástica e do símbolo U representando a Ustase. Estão no clube de futebol local, na mesa de jogos nos parques públicos onde as crianças brincam, no campo de concentração Jasenovac, o maior da Europa não construído pelos alemães. Wilkerson mostra a estátua do partisan Rade Koncar, morto na Segunda Guerra há 70 anos pelos fascistas, agora derrubada pelos neofascistas. O diretor brinca, “Koncar continua a incomodar os fascistas até hoje”.

A Mostra inclui a guerra contra imigrantes travada na Europa. Happy, ficção do diretor austríaco Sandeep Kumar, foca a Áustria, o aviso de deportação do indiano Happy Specht, e sua luta desesperada para ficar ao lado da filha Maya.

E quatro diretoras mulheres abordaram diferentes guerras particulares, no México, Vietnã, Coreia e França:

Sujo é a ficção das diretoras mexicanas Astrid Rondero e Fenanda Valadez sobre a vingança medieval de tribos ou famílias, as mortes de um lado e de outro se perpetuando ao longo das gerações como já relatado pelo albanês Ismail Kadaré em Abril Despedaçado, filmado por Walter Salles no nordeste brasileiro. Aqui, o garoto Sujo tem a vida ameaçada aos quatro anos depois da morte do pai, um matador a serviço dos quartéis. O filme recebeu o Grande Prêmio do Júri do Festival de Sundance.

Não Chore Borboleta trata das guerras conjugais, a dor da traição do marido que Tam, a mulher, descobre através de uma reportagem na televisão. A diretora é a vietnamita Du’o’ng Diêu Linh, e o filme, que envolve mistérios só enxergados por mulheres, é o vencedor do prêmio de crítica no Festival de Veneza.

Cuidando da Minha Filha foi a forma que a diretora coreana Lee Mi-rang escolheu para tratar de duas guerras familiares, a rejeição da mãe pela filha gay e o descaso dos filhos pelos pais idosos abandonados em asilos.

Esta é a Minha Vida retrata a guerra do etarismo, a dor da idade e todas as metamorfoses que a chegada aos 55 anos traz para uma mulher bonita como Barberie Bichette. O filme da diretora francesa Sophie Fillières foi vencedor do prêmio SACD da Quinzena dos Realizadores do Festival de Cannes.

O Pior Homem do Mundo revela o pior lado das guerras de caráter e os males que podem causar. É o filme português de Rodrigo Areias, inspirado num conto policial de Arthur Conan Doyle, personagem do filme. Charles Augustus Howell, filho de mãe portuguesa e pai inglês, foi um chantagista, escroque internacional que viveu na Londres vitoriana. Emigrou aos 17 anos, foi secretário do influente crítico de arte John Ruskin e infiltrou-se na alta sociedade londrina do século 19. Ligou-se ao movimento artístico e virou marchand aproveitando-se da penúria dos artistas falidos, viciados em tintura de ópio. Também era simpatizante do movimento Rosa Branca e outros grupos subversivos, envolvendo-se no atentado contra Napoleão III e conspirando para derrubar o trono inglês.

Charles Augustus, que no conto de Conan Doyle aparece com sobrenome Milverton, existiu realmente e na sua biografia consta que morreu aos 50 anos na porta de um bordel, com a garganta cortada e uma moeda entre os dentes. Mas isto não aparece no filme, que tem uma produção elegante e é rodado na cidade do Porto (Palacete Pinto Leite, Casa Alles, Casa São Roque, Jardim do Museu do Romântico, Jardim Botânico), embora a ação ocorra em Londres entre 1857 e 1882. Uma boa surpresa será ver o filme numa de suas exibições no dia 21/10 na Cinemateca Brasileira, acompanhado pela apresentação musical do violinista Manuel Martins Coelho.

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Norma Couri é jornalista.

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