A naturalização dos desastres climáticos e do silêncio da mídia

(Foto: Bruno Peres/Agência Brasil)

Em abril de 2024, há quase um ano, o Brasil assistiu solidário e preocupado aos eventos climáticos extremos que devastaram o estado do Rio Grande do Sul, causando inúmeros impactos materiais e imateriais. No entanto, passados alguns meses, pouco se noticia sobre a reconstrução dos territórios arrasados, as soluções propostas para o problema e as decisões políticas que as acompanham.

Os desastres causados por deslizamentos, inundações e enxurradas se repetem anualmente em todo o país, em maiores ou menores proporções: litoral norte de São Paulo em fevereiro de 2023 (com 65 vítimas fatais), Petrópolis entre fevereiro e março de 2022 (240 vítimas fatais), sul da Bahia em dezembro de 2021 (com 25 vítimas fatais e 643 mil pessoas afetadas), Minas Gerais em janeiro de 2020 (56 vítimas fatais), e não para por aí.

Contudo, ainda que seja um consenso que as mudanças do clima são resultado de ações humanas, há uma insistência por parte da mídia – e que se repete ao longo do tempo – em chamar de naturais os desastres desencadeados por fenômenos climáticos. E isso leva a um determinado modus operandi de cobertura midiática desses acontecimentos.

Há dois pontos que merecem um olhar crítico sobre a forma que os desastres são noticiados pela mídia. Primeiro, ao chamá-los de naturais, ocultamos a raiz das desigualdades sociais, econômicas e habitacionais que empurram determinados grupos para as áreas de risco ambiental. Com isso, a natureza é tratada como a “culpada” pelos desastres e, assim, os reais responsáveis pela segregação espacial urbana, como o poder público e o mercado imobiliário, saem de cena.

O segundo ponto que merece atenção é que, ao tomar esses acontecimentos como um evento da natureza, o desastre é tratado como um assunto factual, e a cobertura se restringe ao momento da sua ocorrência. Praticamente não são abordados os fatores que levam ao ocorrido ou o que pode ser feito para evitá-lo, já que se trata de uma condição sistêmica em várias cidades do Brasil.

A desnaturalização dos desastres comumente chamados de naturais traz consigo uma mudança de paradigma. Afinal, os desastres urbanos resultam da combinação entre eventos climáticos extremos e um modelo de urbanização antiecológico e desigual.

Enquanto se mantiver no senso comum e nas notícias veiculadas pela mídia a premissa de que os desastres são naturais, não avançaremos nas políticas antecipadas de prevenção e de adaptação climática. A naturalização do desastre abre margens para discursos de desresponsabilização social, como o ilustrado na manchete a seguir.

(Reportagem do jornal O Estado de S. Paulo, Sucursal de Santos: “Agora, 12 vítimas em Santos”. Publicada em 18 de dezembro de 1979. (Arquivo)

Em grande parte desses acontecimentos veiculados pela mídia, observamos uma concepção de desastre natural equivocada, muitas vezes sensacionalista e com um discurso que busca apontar culpados.

Reportagem do UOL publicada em 6 de abril de 2010

A própria utilização do termo “culpa” ao invés de responsabilidade já traz indícios de um discurso que parece ora cristão, ora criminalista. Todavia, culpa e responsabilidade chamam para si um poder de agência que é distinto.

Há, também, em matérias na mídia, o emprego de termos simplistas e sem correspondência com os conceitos científicos da área de gestão de riscos e desastres. Certamente, a maneira de retratar o acontecimento pelo viés da ciência é o que difere a abordagem entre jornalismo cotidiano e jornalismo científico.

Também é recorrente na mídia vincular o desastre a uma grande desgraça (infortúnio, infelicidade), a uma fatalidade (acontecimento imprevisível, inevitável, marcado pelo destino) ou até mesmo a uma catástrofe – como afirmam os pesquisadores Jander Monteiro, da Universidade Estadual Vale do Acaraú, e Maria Elisa Zanella, da Universidade Federal do Ceará, em artigo científico. Isto abre brechas para discursos como o retratado na matéria a seguir, em que a natureza é tomada como um inimigo externo a ser combatido.

Reportagem da Revista Super Interessante, publicada em 31 de janeiro de 2005 e atualizada em 31 de outubro de 2016

A percepção de que os desastres refletem a “fúria da natureza” tem um impacto significativo na gestão de riscos, que frequentemente se concentra em medidas de monitoramento pluviométrico e climatológico. No entanto, essa abordagem tende a priorizar o controle sobre os fenômenos naturais, em detrimento do desenvolvimento de políticas que promovam equidade social e acesso à moradia digna e segura. Discursos como esses frequentemente ignoram aspectos sociais, econômicos e políticos que estão na origem dos cenários de risco, incluindo a vulnerabilidade.

A vulnerabilidade que leva determinados grupos sociais a ocuparem áreas ambientalmente sensíveis é agravada pelo impacto do desastre em si. Além disso, é agravada, também, pela forma como decisões são tomadas no planejamento urbano e na gestão dos riscos.

Há um contexto mais amplo por trás da produção do espaço urbano e do cenário de vulnerabilidade vivenciado pela maioria das populações que residem em áreas de risco. No entanto, o jornalismo tende a abordar esse problema apenas quando os desastres ocorrem, como durante chuvas intensas ou após ciclones, deixando de lado uma análise mais profunda dos fatores subjacentes.

Um dado alarmante que evidencia esse modus operandi mostra que o Brasil investiu R$ 15 bilhões em políticas públicas de resposta e recuperação de desastres entre 2012 e 2023, enquanto apenas R$ 7 bilhões foram destinados à prevenção. Essa disparidade destaca a importância de não se falar em culpa, mas em responsabilidade. Além disso, aponta para o fato de que há uma política de ausência do Estado brasileiro em relação à gestão de riscos – uma ausência de planejamento e de orçamento.

Ao mesmo tempo, há uma ausência de cobertura da própria mídia para acompanhar o que vem sendo feito, e o que vem deixando de ser feito, por meio de políticas públicas e de investimento em medidas de prevenção e adaptação climática. Em síntese, a reatividade da mídia em cobrir somente o momento da catástrofe vai ao encontro do modo responsivo e reativo do Estado na gestão de riscos.

Assim, analisar os desastres climáticos (como aqueles causados por deslizamentos, inundações e enxurradas) a partir de suas causas e consequências é abrir precedentes para novos paradigmas de se tratar o problema. Dentre eles, a perspectiva de que a realidade que se apresenta em uma área de risco ambiental é determinada por múltiplos fatores, não somente aqueles de ordem geológica ou climática tratados isoladamente.

Embora haja preocupação entre os jornalistas, o tema dos riscos ambientais não é tão atrativo para a cobertura midiática em razão da falta de concretude da pauta ou pela sua ausência na agenda pública ou política, não gerando algum valor-notícia atrativo ao jornalismo – como afirmam as pesquisadoras Carine Massierer e Eliege Fante, ambas jornalistas e integrantes do Grupo de Pesquisa Jornalismo Ambiental, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). De igual maneira, falta um jornalismo de soluções que fomente debates para pensarmos inovações de mitigação dos riscos ambientais e de resiliência climática.

Por fim, há uma ciência por trás da gestão de riscos e desastres que vem sendo ignorada, tanto pelo Estado quanto pelo jornalismo. É preciso, portanto, fazer circular discursos jornalísticos sobre o que vem sendo feito paulatinamente pelo poder público na prevenção de desastres. E, ainda, sobre o que vem sendo dito pela ciência quando o desastre é apenas iminente, um futuro próximo – e não um passado que soterrou memórias e pertences de famílias inteiras.

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Talita Gantus de Oliveira é geóloga e pesquisadora, mestre e doutora em Geociências com especialização em Jornalismo Científico.

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