Os Estados Unidos humilharam a Europa em Munique

(Foto de cottonbro studio/Pexels)

O vice-presidente norte-americano J. D. Vance praticamente declarou guerra ideológica à Europa e humilhou os dirigentes europeus. Foi essa a manchete dos principais jornais europeus, há menos de uma semana, repercutindo o discurso do enviado de Trump à Conferência de Segurança da Europa, em Munique.

Dois dias antes, o presidente norte-americano Donald Trump tinha conversado com o presidente russo Vladimir Putin por telefone e, como bons amigos imperadores, acertaram um encontro para negociarem entre eles uma lucrativa paz na Ucrânia.

Acabou o isolamento da Rússia por iniciativa dos Estados Unidos. Como no passado, serão esses dois grandes quem ditarão agora os destinos de muitos países. Melhor ainda do que na época da Guerra Fria, porque Trump e Putin têm muita coisa em comum. Enganou-se a esquerda brasileira, que apoiou a invasão da Ucrânia, confundindo a Rússia de Putin com a antiga URSS em luta contra o imperialismo norte-americano. Enganaram-se a extrema direita e os evangélicos para os quais a Rússia ainda era o bicho papão comunista. Mas uma coisa é certa, tanto Trump como Putin representam o grande capital no poder, os bilionários e os oligarcas, como diria Marx.

Em Ryad, Serguei Lavrov e Marco Rubio começaram a acertar como será negociado o fim da guerra na Ucrânia. Quando estiver feita a partilha, sem a presença de Zelenski, o resistente ucraniano, e sem representantes da União Europeia, haverá o encontro dos dois chefes mundiais, Trump e Putin, poderíamos dizer donos de boa parte do mundo.

Diante dessa inusitada partilha, os 22 países da Liga Árabe marcaram um encontro urgente, dia 4 de março, para apresentar a Trump uma a alternativa ao seu plano imobiliário e de Riviera para Gaza, no qual a Autoridade Palestina deverá tomar do Hamas o controle de Gaza.

Não foi só o mundo ocidental que acordou em plena mudança. A próxima etapa será no Oriente Médio, onde a queda do ditador Bashar al-Assad desequilibrou outra ditadura, a da teocracia islâmica persa do Irã, com sérios problemas econômicos.  Além disso, seu aiatolá envelhecido está sem um sucessor desde a morte do presidente Ebrahim Raisi, num acidente de helicóptero, em maio de 2024.

O recente fortalecimento de Israel com a vitória de Trump já desestabiliza o Irã, tanto que o filho do Xá deposto pela ascensão do aiatolá Khomeini já convocou os iranianos no exílio para tentarem a queda da teocracia iraniana, prometendo um governo desvinculado de religião.

Na Europa abandonada pelos EUA, a extrema direita ameaça, na Alemanha, chegar mais perto do poder nas eleições de domingo 23, com o partido Alternativa para a Alemanha, AfD, comparado por muitos aos nazistas da época de Hitler.

Onde Trump abandonou os europeus

Ficou evidente em Munique ter havido uma fratura no mundo quando o vice-presidente Vance, em vez de tratar da questão da Ucrânia e da Rússia, decidiu passar um sabão nos dirigentes europeus num discurso extremamente agressivo, no qual chegou mesmo a elogiar a extrema direita, a pretexto de defender a liberdade de expressão e a liberdade religiosa.

No fundo, Vance utilizou as mesmas críticas de Musk já feitas ao STF brasileiro. Para o norte-americano, “o recuo da liberdade de expressão” na Europa, o recuo de certos valores fundamentais e a imigração são mais graves que a ameaça da Rússia ou da China.

Declarações que reforçaram a aproximação de Trump com Putin e o abandono da Ucrânia, que será obrigada a aceitar um plano de paz no qual sairá provavelmente derrotada.

Ninguém esqueceu que o chamado primeiro-ministro de Trump, Elon Musk, apoia a extrema direita alemã e o seu partido AfD nas eleições gerais do dia 23, tendo mesmo feito uma saudação nazista na posse de Trump.

Vance deixou os europeus chocados por se sentirem abandonados pelos EUA de Trump na questão da Ucrânia e por perceberem já ser coisa do passado a luta dos aliados americanos pela liberdade contra o nazismo alemão, na Segunda Guerra.

Depois de ter criticado o cordão sanitário criado pela Alemanha para impedir a chegada ao poder da extrema direita, o vice-presidente norte-americano foi se encontrar num hotel com a líder e candidata da extrema direita alemã, Alice Weidel, embora tivesse se negado a participar de encontros com os europeus.

Fratura entre Washington e Europa

A administração Trump, por seu vice-presidente Vance criou uma enorme fratura entre Washington e seus “aliados” europeus. Qual o objetivo? É claro que Trump tem um objetivo que, no momento, é o de abandonar a Europa para se aproximar da Rússia. Embora Vance tenha agitado em Munique a liberdade de expressão, também a bandeira da extrema direita bolsonarista brasileira, Trump restringiu a liberdade dos jornalistas da agência Associated Press, AP, proibidos de participar das entrevistas na Casa Branca e de viajar nos aviões oficiais do governo, por não terem aceitado mudar o nome do Golfo do México para Golfo da América.

O chanceler alemão Olaf Scholz, visivelmente irritado com o discurso de Vance e o apoio de Musk à extrema direita alemã, declarou que “os alemães não aceitarão que terceiras pessoas intervenham em favor da extrema direita AfD. Nós é que decidiremos qual direção tomará nossa democracia. Ninguém mais”.

Algumas referências:

https://www.lemonde.fr/international/article/2025/02/15/a-la-conference-de-munich-la-charge-du-vice-president-americain-j-d-vance-contre-le-vieux-continent-place-les-europeens-face-a-leurs-responsabilites_6547390_3210.html 

https://www.letemps.ch/monde/mini-sommet-russo-americain-washington-rompt-l-isolement-de-moscou?srsltid=AfmBOorEb4FX_qRu3uw1RX7jZ-IWHgFGYRo7ey6Cqrp8PrVJ1pEaHBbF

https://www.letemps.ch/monde/moyenorient/alon-liel-ex-ambassadeur-d-israel-en-afrique-du-sud-il-y-aura-bientot-une-alternative-au-plan-trump?srsltid=AfmBOoowJuHcXJdRAb5uH3UBH7OSqVZdveIswMd7cOKUkTtblVJ4s_Yd

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Rui Martins é jornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão, exilado durante a ditadura. Criador do primeiro movimento internacional dos emigrantes, Brasileirinhos Apátridas, que levou à recuperação da nacionalidade brasileira nata dos filhos dos emigrantes com a Emenda Constitucional 54/07. Escreveu “Dinheiro Sujo da Corrupção”, sobre as contas suíças de Maluf, e o primeiro livro sobre Roberto Carlos, “A Rebelião Romântica da Jovem Guarda”, em 1966. Vive na Suíça, correspondente do Expresso de Lisboa, Correio do Brasil e RFI.

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