Ainda Estou Aqui estabelece um marco na cidade natal de Médici

(Foto: Reprodução de imagem do trailer do filme “Ainda Estou Aqui”, dirigido por Walter Salles)

Completando dois meses em exibição no Cine 7, único cinema de Bagé, na fronteira com o Uruguai, Ainda Estou Aqui ostenta o título simbólico de filme nacional que permaneceu em cartaz por mais tempo na cidade natal do general Emílio Garrastazu Médici. Um marco local para a produção dirigida por Walter Salles, que, em algumas sessões, chegou a ser aplaudida de pé pelo público bageense.

A única sala em operação na cidade de aproximadamente 121 mil habitantes foi inaugurada há 20 anos, após uma mobilização da comunidade, que não contava com cinema desde a virada do século. Como pequeno exibidor, o Cine 7 (cujo nome faz referência à Avenida Sete de Setembro, a principal de Bagé) resiste em um mercado onde a manutenção de um filme em cartaz depende da bilheteira e da aprovação das distribuidoras, o que torna o feito de Ainda Estou Aqui ainda mais significativo. Para dimensionar o recorde do filme, basta revisar a trajetória da sétima arte na cidade.

Os bageenses têm uma relação íntima e antiga com as produções cinematográficas. A primeira exibição em Bagé foi realizada em 1897, dois anos após a pioneira projeção organizada pelos irmãos Lumière, na França. Palco da sessão inaugural no município, o Teatro 28 de Setembro foi consumido pelo fogo em 1917, justamente durante a exibição de um filme, o que não abalou a ligação com o cinema. No livro Bagé – Fatos e Personalidades, o jornalista Mário Lopes destaca que a cidade teve mais de duas dezenas de salas de exibição desde então, chegando a ter cinco operando simultaneamente na década de 1950. E Bagé, que já contabiliza 15 edições do Festival Internacional de Cinema da Fronteira, também foi cenário para a produção de um épico.

A gravação de O Tempo e o Vento agitou a região em 2012, envolvendo a construção da cidade cenográfica de Santa Fé, no Parque do Gaúcho. Dirigido por Jayme Monjardim, o filme, baseado na obra do escritor Érico Veríssimo, mobilizou nomes como Fernanda Montenegro, José de Abreu, Cleo, Marjorie Estiano e Thiago Lacerda, que estabeleceu uma relação com a cidade. A produção da Globo Filmes estreou no Cine 7 em 2013, atraindo grande público. Mas seu tempo em cartaz foi menor do que o de Ainda Estou Aqui, que envolve o período de governo de um militar conterrâneo.

Médici nunca se afastou totalmente de Bagé. Quando governou o Brasil, entre 1969 e 1974, realizou três visitas oficiais ao município. E, na última, em março de 1974, poucos dias antes de transmitir o cargo para o general Geisel, conforme destaca o historiador Cláudio de Leão Lemieszek, no livro Governos e Governantes de Bagé (1968-1974), inaugurou uma série de obras de infraestrutura, incluindo as BRs 153 e 293 e a usina termoelétrica a carvão de Candiota, batizada com seu nome. Em sua terra natal, inclusive, o militar segue presente em nomes de escolas, de um complexo esportivo e em um busto instalado na Santa Casa de Caridade, todos inaugurados na derradeira agenda.

Evocando o líder do “milagre econômico”, a memória de Médici na cidade envolve uma dinâmica de esquecimento – silenciando sobre aspectos como repressão política e censura, por exemplo –, constituindo ainda um campo de disputa que inclui críticas ao filme dirigido por Walter Salles (especialmente nas redes sociais). Desde 1974, apenas uma homenagem ao general foi modificada e outra revertida no município. Em 2002, no primeiro governo do PT, a prefeitura retirou do Ginásio Militão, como é popularmente conhecido, um letreiro em agradecimento. No lugar da frase “Obrigado, Presidente Médici”, foi instalado um novo painel com a denominação “Ginásio Presidente Médici”. E, em 2015, no contexto dos debates que emergiram com o trabalho da Comissão Nacional da Verdade, o nome do general foi retirado de uma agência bancária.

Médici é mais do que um retrato na parede em Ainda Estou Aqui. Seu governo integra o tempo histórico retratado pelo longa-metragem que rendeu a Fernanda Torres o Globo de Ouro de Melhor Atriz em Filmes Dramáticos, pela interpretação de Eunice Paiva, além de três indicações ao Oscar, incluindo o de Melhor Filme – algo inédito para produções nacionais. A obra, que expõe diferentes dimensões das violações dos direitos humanos, no caso da morte do ex-deputado Rubens Paiva, em 1971, propõe reflexões necessárias sobre impunidade e resistência. Uma interpretação possível sobre o filme baseado no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva. Mas não única.

A linguagem cinematográfica é específica e multifacetada, combinando roteiro, fotografia, figurino, interpretação, trilha sonora, maquiagem, edição e direção, entre outros elementos artísticos que tornam a missão de analisar um filme uma tarefa complexa. Mas nenhuma camada de significado escapa ao crivo do contexto histórico – o que envolve aspectos sociais, culturais e condições de produção e distribuição. Ainda Estou Aqui, neste sentido, pode ser definido como um produto de seu tempo, especialmente pelas contribuições para um debate tão necessário em um presente de negação à ditadura civil-militar, no que parece ter tocado o público de Bagé.

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Sidimar Rostan, morador de Bagé, é graduado em Comunicação Social – Habilitação em Jornalismo, pela Urcamp, no RS, com especialização em Comunicação e Política. 

 

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