O encanto de Mirabel

(Foto: Gerd Altmann/Pixabay)

Encanto (2021), animação da Disney, tem o mérito de, pela primeira vez, retratar uma família “imperfeita”. É a história da família Madrigal, moradores de uma vila protegida por montanhas na Colômbia, um espaço mágico que foi dado a eles após grande sacrifício de um antepassado. Todos da família, que vivem em uma casa mágica, possuem habilidades especiais, menos a protagonista Mirabel. Encanto é sobre escolhas e exclusões, sobre expectativa familiar e sobre como pessoas diferentes, que não seguem um padrão, podem ser segregadas dentro de casa. E como, na maioria das vezes, essas pessoas percebem de longe a verdade da família, seus defeitos e riscos.

Talvez tenha gostado tanto do filme também por entender que é uma metáfora dos nossos dias, em que alguns julgam ter superpoderes e acham que constroem, em suas casas ou em seus trabalhos, refúgios e ambientes perfeitos, sem perceber as nuances de diversidade, os talentos distintos, as características que fazem (ou deveriam fazer) de todos nós humanos. Nos últimos tempos, a diversidade e outros temas a ela relacionados têm sido tratados de forma central no debate internacional e nacional, nas discussões sobre o desenvolvimento e na formulação de políticas públicas, especialmente na área da educação.

Diante da crescente afirmação das identidades, a ideia de diversidade tornou-se acontecimento significativo, especialmente em sociedades geradas pelo colonialismo europeu, em que grupos e indivíduos reafirmam seus particularismos locais e suas identidades étnicas, raciais, culturais ou religiosas, chamando a atenção dos organismos internacionais a atributos da globalização que não são apenas socioeconômicos e tecnológicos. Qualquer esforço em direção ao diálogo intercultural deve ser construído com a premissa de que todas as culturas são e estão num processo contínuo de evolução, sendo resultado de múltiplas influências ao longo da história.

Nessa perspectiva, as características percebidas como fixas ou identitárias, que parecem isolar-nos uns dos outros e plantar as sementes do estereótipo da discriminação ou da estigmatização, não devem ser vistas como obstáculos ao diálogo, mas como o próprio chão sobre o qual esse diálogo pode começar.

As capacidades interculturais são ferramentas que ajudam no encontro entre pessoas de culturas diferentes e a educação é instrumento central para cumprir essa missão. Assim, a educação multicultural deve ser complementada pela educação intercultural e pela educação por meio da diversidade cultural. Educação intercultural, na perspectiva da UNESCO, refere-se ao aprendizado que está pautado na própria cultura – linguagens, valores, visão de mundo e sistema de conhecimento –, sendo, ao mesmo tempo, receptiva e aberta à apreciação de outras formas de conhecimento, valores, culturas e linguagens. Por meio da educação, sob a clave da cultura, há a possibilidade de um governamento que guarda e conserva um caráter global que se exerce sobre a sociedade e também como uma resposta local às reivindicações de pertencimento e/ou reparação. 

No multiculturalismo, a tolerância seria o valor, a finalidade, o ponto de partida e de chegada do processo educativo. Há, nessa perspectiva, uma tentativa de integração cultural, uma cidadania universal. São possíveis e desejáveis hoje, em face das múltiplas possibilidades de comunicação do atual processo de mundialização da economia capitalista, aproximações de ordem comunitária.

Globalização pressupõe reciprocidade, e esta não existe nas relações norte/sul. Entretanto, os indivíduos continuam a projetar suas expectativas nos horizontes nacionais e os Estados continuam a ser instâncias de intermediação do indivíduo com o mundo. Um Estado legítimo não pode perder suas bases propiciadoras do bem-estar social e de inserção ativa, sem xenofobias passadiças, numa política de cooperação mais ampla. As novas fronteiras não devem ser de separação, mas de contato, de compartilhamento – um sentimento de parentesco que não se esgota nas fronteiras do Estado, mas que também não o desconsidere.

A casa da humanidade vem perdendo o seu encanto para um modelo descuidado de valores e princípios. Conforme assinalou Zygmunt Bauman (1925-2017): “o capitalismo é um sistema parasitário. Como todos os parasitas, pode prosperar durante certo período, desde que encontre um organismo ainda não explorado que lhe forneça alimento. Mas não pode fazer isso sem prejudicar o hospedeiro, destruindo assim, cedo ou tarde, as condições de sua prosperidade ou mesmo de sua sobrevivência” (Capitalismo parasitário, 2010).

Em Olhe as Luzes, Meu Amor (2024), Annie Ernaux, francesa vencedora do Nobel em 2022, conta em diário os detalhes de uma rotina vivida em supermercados. Com olhar afiado e irônico para as estratégias de manipulação capitalista, Ernaux mostra obviedades que normalizamos diariamente. “Como existem bem mais pessoas muito pobres do que muito ricas, o setor de superofertas ocupa uma área cinco vezes maior”. É “uma maneira de ser aceito no espetáculo da festa e mergulhar nas luzes da abundância”. A propósito, na seção de queijos, a escritora observa um casal hesitante de jovens e, com eles, destaca a zona cinzenta que cerca a sobrevivência moderna e o mundo do consumo. “Fazer compras juntos pela primeira vez é o prelúdio de uma vida comum. É conciliar os gostos, o orçamento, combinar no que diz respeito à alimentação, essa necessidade primária. Convidar um homem ou uma mulher para ir ao supermercado não tem nada a ver com convidar para ir ao cinema ou para beber alguma coisa. Não há como se pavonear para conquistar o outro, não há possibilidade de enganação”.

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Marcos Fabrício Lopes da Silva é Doutor e Mestre em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais (FALE/UFMG). Poeta, escritor, professor e pesquisador. Jornalista e autor do livro Machado de Assis, crítico da imprensa (Outubro Edições, 2023). Participante do Coletivo AVÁ, coorganizador do Sarau Marcante e Membro da Academia Cruzeirense de Letras – ACL (Cruzeiro-DF). 

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