Queremos saber: o humano ainda existirá pós Inteligência Artificial?

(Imagem: Gerd Altmann/Pixabay)

O ano era 1976, quando Gilberto Gil cantava, ao lado dos Doces Bárbaros, os seguintes versos: “queremos saber/ o que vão fazer/ com as novas invenções /queremos notícia mais séria/ sobre a descoberta da antimatéria/ e suas implicações”. Desde antes da década de 1970 até o atual século XXI, as novas invenções caminharam em uma velocidade absurda, mas suas implicações ainda geram questionamentos. A invenção da vez é a Inteligência Artificial (IA), que na verdade já vem sendo estudada há décadas, mas que teve um enorme avanço nos últimos anos e segue provocando debates e oposição de opiniões entre cientistas, líderes políticos e sociedade civil. Basta uma busca rápida em jornais e revistas online para encontrarmos uma infinidade de reportagens e colunas sobre o assunto. Em sua maioria, estes textos debatem e colocam à prova qual a responsabilidade da ciência no desenvolvimento dessas tecnologias e qual deveria ser a sua posição ética diante das problemáticas.

Em março de 2023, um grupo de especialistas em IA e alguns executivos da indústria tecnológica escreveram uma carta aberta pedindo uma pausa de seis meses nos treinamentos desse tipo de tecnologia. A maior preocupação seria o impacto que a chamada IA Gerativa pode causar na sociedade. Este é o tipo de IA do ChatGPT, o mais novo sistema de Inteligência Artificial, desenvolvido pela empresa OpenAI. Sua maior inovação está no fato de que o conteúdo criado pelo sistema é muito semelhante ao produzido por humanos.

Na época, diversos textos jornalísticos discutiram o conteúdo da carta e apontaram questões. Os colunistas José Renato Laranjeira de Pereira e Cynthia Picolo Gonzaga, na Folha de S. Paulo, listaram os riscos já conhecidos do uso indiscriminado da IA: “maior automatização da geração de conteúdo desinformativo; limitação da oferta de informações diversas; vieses discriminatórios negativos; violação de direitos autorais; capacidade de enganar e manipular indivíduos; altos custos energéticos”. Uma lista que parece não ter fim. Contudo, o ponto mais importante indicado na coluna está no fato de que a carta criticava apenas um uso futuro da IA e ignorava os problemas que já estão sendo gerados por ela. O argumento dos articulistas, muito bem fundamentado, é que precisamos sim nos preocupar com a criação de sistemas futuros, mas a regulamentação dos sistemas que já existem deve ser imediata.

Essa informação também funcionou como chave de leitura do artigo “A IA e a beleza da imperfeição humana”, escrito por Luiz Vianna Sobrinho e publicado no Outras Palavras. Ao citar o escritor de ficção norte-americano William Gibson, que na virada do milênio afirmou que “o futuro já está aqui, só não está distribuído de maneira muito uniforme”, o texto parte de uma visão filosófica para pensar a IA não somente como um vaticínio de futuro, que será acessado por poucos escolhidos, mas como um futuro já presente, que pode ser sentido por alguns, mas que permanece em latência virtual para a maioria das pessoas.

Luiz Vianna Sobrinho partiu dos pensamentos do filósofo Spinoza para concluir que há um futuro, moldado pelas tecnologias, que já está em andamento, mas que não é uniformemente distribuído e percebido. A sociedade tem sido delineada por uma rápida expansão da IA, que as capacidades humanas não conseguem acompanhar, gerando um sentimento de estarmos ultrapassados, mas ao mesmo tempo à espera de promessas tecnológicas.

Ao construir uma analogia com o mito inaugural da humanidade, presente no mito da caixa de Pandora, apresentado pelo poeta grego Hesíodo, o autor da reportagem trata a atual transformação tecnológica como “o nascer de uma nova geração de habilidades”. Ele indica que muitos cientistas, que ironicamente ele denomina de “deuses no Olimpo da ciência contemporânea”, acreditam que vivenciamos uma possível realidade virtual, que poderíamos denominar de pós-humano. E essa realidade traz consigo uma disputa entre o bem e o mal, retirando-nos do foco do que realmente importa, que é o perfeito entendimento do próprio objeto tecnológico. Neste ponto, o texto é certeiro ao indicar que diferentemente de outras tecnologias que foram transformadoras, como o domínio da eletricidade, a tecnologia da informação é a única que funciona tanto como insumo tecnológico quanto instrumento ideológico e é exatamente aí que está o seu poder de controle sobre a sociedade.

O avanço das tecnologias de IA, como bem apresenta o texto, toca em algo que nos caracteriza como humanos, pois consegue realizar uma emulação da capacidade cognitiva humana projetada na criação tecnológica. Sendo assim, nunca a relação do homem com a tecnologia foi tão longe, porque agora a máquina pode ser perigosamente semelhante a nós. Daí a importância deste e de outros textos que tem circulado na mídia, como um alerta sobre o desenvolvimento da IA. É preciso fazer uma distinção entre pessoas e computadores e as máquinas deveriam ser pensadas para aumentar os níveis de criatividade e conexão entre os humanos e não os substituir. 

No entanto, o que temos visto é que ainda falta muito para a total compreensão dos desenvolvimentos tecnológicos atuais, que acabam sendo aplicados sem regulamentação. Como apontou Antonio Prata no texto “Burrice natural, inteligência artificial” (Folha de S. Paulo), uma equipe das mais gabaritadas sobre o funcionamento da IA estimou que há 10% de chance desta tecnologia acabar com a humanidade. Outro ponto é que eles sequer conhecem os detalhes de como é exatamente feito o funcionamento desse tipo de máquina, que executa bilhões de ações entre uma pergunta e sua resposta final. 

No início dos avanços da cibernética, que lá em meados da década de 1960 começou a pautar os primeiros achados tecnológicos dessa área do conhecimento, esse debate possuía uma abordagem interdisciplinar, entre as áreas técnicas, a filosofia e os pensamentos humanos e sociais. De lá pra cá, a filosofia cibernética foi sendo deixada de lado e os achados tecnológicos foram sendo pautados pelo financiamento e exclusivamente pela técnica, sem um maior questionamento de suas implicações.

Parte dessa história está contada na reportagem “Outra inteligência artificial é possível”, escrito por Evgeny Morozov em edição do Le Monde Diplomatique Brasil. No texto, Morozov questiona exatamente a forma de integração entre humano e tecnologia, a partir dos conceitos de aumento e melhoria. Como ele indica, o aumento nos priva de habilidades em prol da eficiência, enquanto a melhoria nos faz adquirir novas habilidades, enriquecendo nossa interação com o mundo. No fim dessa história, a pauta é se seremos operadores passivos de uma IA cada vez mais distante da essência humana ou se nos tornaremos artesãos críticos dela.

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Lívia Mendes Pereira é graduada em Letras e mestra em Estudos Literários pela Unesp/Araraquara, especialista em Jornalismo Científico pelo Labjor e doutora em Linguística pela Unicamp. Atualmente, é bolsista Mídia Ciência Fapesp.

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