Carta aberta – escrita por um homem com “H”

man pointing to the front

Por Heloisa de Vivo (CRP 01/9107), a convite do colunista

Em meio a um ano carregado de violência contra as mulheres, a carta recebida e replicada a seguir tem forte significado.

E aí, cara, beleza?

Resolvi escrever esta carta, meio que uma confissão/reflexão, para compartilhar com você sobre algumas coisas pelas quais passei. Talvez lhe ajude também.

Eu sei que homem não está acostumado a falar sobre sentimentos. Deve ser porque aprendemos (pelo menos, eu aprendi) desde criança que homem tem de ser forte, que homem não chora, que homem não sofre; e por não sofrer, não precisa dizer nada, certo?

Quando tinha uns 8 anos, tomei o maior tombão de bicicleta. Fiquei todo ralado! Estava dolorido, com vergonha e, quando cheguei em casa chorando, meu pai disse: está parecendo mulherzinha desse jeito! Engole esse choro e seja homem. Se não, vai chorar ainda mais com as cintadas que vou te dar!” E, claro, calei a dor para evitar ainda mais sofrimento.

Hoje, a duras penas, aprendi que está tudo bem sofrer, sentir dor. Isso não me torna menos homem.Não preciso ser forte o tempo todo, nem bravo e violento para mostrar minha masculinidade. Ensinaram isso para a gente!e

E não era só meu pai que falava coisas desse tipo. Minha mãe, minha professora, e até minha irmã mais velha reforçavam essa ideia. Lembro de uma amiga dela que me provocava, dizendo que eu era criancinha ainda, e tinha de provar para ela que era homem com H maiúsculo. E eu tremia de nervoso. Até que um dia minha irmã armou para nos deixar sozinhos em casa. Aí tive de provar que era homem. Nem curtia ela, nem estava com vontade. Cá para nós, estava me borrando de medo daquele mulherão (dizem que mulher desenvolve antes que homem. Ou são obrigadas a isso?). Foi péssimo! Mas, pelo menos, consegui provar que era homem, né?

Quando meus pais descobriram, em vez de punição, recebi elogios. Minha mãe disse toda orgulhosa: “segurem suas cabras que meu bode está solto!”. E meu pai veio me parabenizar, dizendo que eu puxei a ele, que não negava fogo, e que economizei seu dinheiro com “puteiro”. Esse foi o ambiente em que cresci.

A vida foi passando e reproduzi tudo exatamente como me ensinaram e esperavam de mim. Peguei várias mulheres, briguei na rua, pratiquei bullying com os meninos estranhos, puxei ferro, fiquei bêbado, usei droga, tirei racha…. Resumindo, fiz muita merda!

Até que entrei na faculdade, conheci a mulher com quem me casaria. Levei-a em casa para apresentar aos “velhos” e minha mãe disse: “até que enfim arrumou uma mulher de família para lhe botar nos eixos e cuidar de você!” Como se ela tivesse obrigação de cuidar de macho adulto.

Eu me formei, casei, trabalhei para sustentar minha família. Tinha de ser o provedor, até porque não deixei minha mulher trabalhar. Mulher minha não ia ficar na rua. Tinha de cuidar da casa e dos meninos.

Até que enjoei um pouco dessa vida. Minha mulher estava ficando meio gorda e feia, não conversava mais coisas interessantes. E eu falava para ela: “Você não é mais a mulher com quem me casei! Esta toda largada!”. Aí ela chorava e fazia aquele dramalhão. Entendi bem depois que isso já era violência, mas, na época, achava que estava fazendo bem para ela. Mas nunca iria me separar! Quando a gente se casa é para sempre!

Minha secretária se tornou minha amante. Arrumei fora o que não tinha mais em casa. Quem nunca ouviu esse ditado? Prometia para ela que iria abandonar minha família, mesmo sabendo que não era verdade. Um dia, acho que cansada das minhas promessas, escreveu uma carta para minha mulher contando tudo. Aí foi aquele fuzuê! No final, minha mulher me perdoou. Também, ela nem tinha como se sustentar se eu saísse de casa.

Faz uns cinco anos que eu perdi meu emprego. Hoje eu consigo falar que me senti um inútil, um bosta. Mas não podia sentir, lembra? Aí, comecei a beber todos os dias. A “marvada” fazia eu me sentir melhor por um tempo, mas aí bebia de novo… e de novo… Brigava com minha mulher, porque ela me irritava dizendo para parar de beber e ir procurar emprego. Até que um dia dei umas pancadas nela. E bati outras vezes. Quem era ela para me dar lição de moral? Eu que mandava em casa!

Numa dessas, ela foi à delegacia perto de casa e me denunciou. Quase fui preso. Eu me desesperei. Prometi que mudaria, que pararia de beber, e iria procurar emprego. Eu conhecia a Lei Maria da Penha, mas achava que só gente pobre e sem estudo era enquadrado nela. Mandaram-me conversar com umas psicólogas. Na época, achei a maior “viadagem”, mas melhor que ser preso. Comecei a frequentar um grupo de homens e, no início, achei bem ridículo, mas aprendi muito.

Descobri que as mulheres apanham muito. São mais de 500 casos por hora no Brasil! A grande maioria acontece dentro de casa. E que não precisa bater para agredir. A violência psicológica pode ser ainda pior que a física. E entendi que o problema vai além de leis e punições. A origem é cultural!

A gente pode até ter leis e políticas públicas muito boas, mas enquanto a gente não mudar essa cultura, vai continuar do mesmo jeito. Aprendi sobre gênero que é aquilo que diferencia socialmente as pessoas e que é moldado por padrões histórico-culturais atribuídos para homens e mulheres, por isso lhe contei aquelas coisas sobre minha infância e adolescência.

Compreendi que o patriarcado nos ensina que os homens são superiores e as mulheres, mera propriedades. Que machismo não é só coisa de homem; é o comportamentos de alguém que recusa a igualdade de direitos e deveres entre os gêneros sexuais, favorecendo o sexo masculino sobre o feminino. O machismo pode estar em tudo: na música, no cinema, até nas mulheres que o reproduzem. Aprendi, ainda, que feminismo não é o oposto de machismo, como muitos pensam.

Entendi que reproduzi modelos prontos de como ser homem, como uma performance, sem nem refletir.

Aprendi que a gente tem de abrir os olhos e o coração para olhar para fora do sistema e para dentro da gente mesmo, e perceber que não fazemos mal somente à mulher quando agimos da forma como agi, prejudicamos a nós mesmos e a toda sociedade.

Aprendi ainda que o fim da violência contra mulheres não é só problema delas, é uma construção de todos nós.

Fiquei com vontade de escrever essa carta para lhe contar essa experiência de vida e para dizer que você não precisa passar por nada disso para entender. Espero que seja útil.

Valeu!!!

Um abração!!!

Essa carta, que hoje reproduzo aqui na coluna, devido a sua importância como alerta e psicoeducação a toda sociedade, foi escrita pela professora Heloisa de Vivo como atividade lúdica aos seus alunos de psicologia. Que em 2025 tenhamos mais cartas e menos violência contra a mulher. Feliz ano novo a todos. Até a próxima!

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