Prática jornalística: reflexões sobre transparência e o uso de IA

(Imagem: Tung Nguyen por Pixabay)

O uso de inteligência artificial (IA) no jornalismo já faz parte do cotidiano de diversos veículos de mídia, tanto no Brasil quanto no exterior. Organizações de notícias como Associated Press, Washington Post e BBC têm integrado ferramentas de IA em suas operações, enquanto no Brasil, nomes como Grupo Globo, Estadão, UOL, Agência Pública e Núcleo também as têm adotado. A aplicação desse tipo de tecnologia é diversa, podendo seguir desde a automação de tarefas – como a transcrição de textos e criação de resumos –, processamento e interpretação de um grande volume de dados, a reconhecimento de padrões e tendências, além da distribuição dos materiais.

Embora o tema não seja novo, a discussão sobre suas implicações nunca foi tão debatida por profissionais e pesquisadores da área. Tais debates não giram apenas em torno do que seriam as oportunidades oferecidas pela IA, mas também das disputas que emergem, por exemplo, o uso extensivo de produtos e infraestrutura de IA de grandes empresas de tecnologia como Google, Amazon e Microsoft faz com que elas passem a ocupar um espaço ainda maior em redações noticiosas, especialmente aquelas menores que não possuem recursos para desenvolver suas próprias tecnologias, o que na prática pode limitar sua autonomia editorial e as expor às mudanças e interesses dessas grandes plataformas. Há ainda fatores éticos que precisam ser considerados, um será especificamente trabalhado ao longo do texto: a questão da transparência.

Ver através da redoma?

O jornalismo tem como uma de suas funções essenciais revelar informações que são muitas vezes deliberadamente ocultadas, trata-se de uma prática construtora de conhecimento que não apenas busca dados e fatos, mas analisa e expõe situações de interesse público. No entanto, essa transparência, que antes era um valor aplicado exclusivamente à exposição de terceiros, passou a caminhar em direção ao próprio campo jornalístico.

Há uma expectativa de que os veículos sejam claros sobre suas operações, suas escolhas editoriais e os processos por trás da produção das notícias. Esse compromisso com a transparência pode aparecer de várias maneiras: informar quem controla o veículo, divulgar o histórico profissional dos jornalistas, explicar como o conteúdo é financiado ou detalhar as decisões que levaram à publicação de determinada matéria. O que se entende é que tais práticas, em alguma medida, ajudam a construir uma relação de confiança com o público, ao mesmo tempo em que tornam o jornalismo mais acessível e compreensível.

Paradoxalmente, no momento em que mais se fala sobre transparência, muitas publicações parecem menos claras em suas abordagens. Notícias são apresentadas de forma fragmentada ou sem contexto suficiente, dificultando a compreensão completa dos fatos. Além disso, escolhas editoriais e possíveis influências externas, como interesses econômicos ou institucionais, frequentemente permanecem obscuras; uma falta de clareza que enfraquece a conexão com o público e gera desconfiança, afastando o jornalismo de seu papel como guardião do interesse público.

Quando se fala em transparência é preciso compreender que ela própria enquanto uma prática necessária às organizações de mídia tem uma limitação e que seu uso também precisa ser ponderado no sentido de que não pode ser um valor que se sobrepõe a outros tão ou mais importantes e que sua presença nos produtos jornalísticas vai depender de cada pauta coberta. Basta pensar que a transparência não pode, nem deve se sobrepor quando fontes são apresentadas em situação de anonimato a fim de proteger sua integridade física.

Se os desafios para implementar práticas transparentes já eram significativos, a adoção de mecanismos como a inteligência artificial nas redações acrescenta um novo nível de complexidade, exigindo reflexão e adaptação das organizações noticiosas. São inúmeras as questões relacionadas à transparência e à ética quando se fala em inteligência artificial, entre as quais: deixar claro quais aspectos da reportagem foram construídos com auxílio de IA; tornar compreensíveis os mecanismos utilizados, como algoritmos e modelos de dados; e garantir que os dados coletados, mesmo aqueles provenientes de fontes públicas, sejam adquiridos de forma ética e legal.

Ainda são escassas as iniciativas de organizações que desenvolvem diretrizes e atualizam seus princípios editoriais em relação ao uso de IA, mas já é possível observar alguns esforços voltados para alcançar esses objetivos. O Núcleo, por exemplo, foi o primeiro veículo brasileiro a revisar suas diretrizes sobre IA. A sua política de uso de inteligência artificial foi lançada em maio de 2023 com uma série de orientações sobre o que é plausível de ser aplicado ou não na redação. Estadão e Grupo Globo, em novembro de 2023 e junho de 2024, respectivamente, também organizaram diretrizes nesse sentido. Numa escala global, a Repórteres Sem Fronteiras publicou, também ano passado, a Carta de Paris sobre IA e Jornalismo, um documento que estabelece dez diretrizes fundamentais para garantir o uso ético e responsável de ferramentas de IA.

Tratando de vieses

Ainda na esteira desse debate, a transparência no uso da inteligência artificial no jornalismo envolve questões que vão além da simples divulgação de práticas. Quando se fala em transparência, muitas vezes confunde-se e associa-se essa temática à neutralidade ou imparcialidade dos veículos, como se as redações estivessem denotando a totalidade de suas escolhas e demonstrando inteiramente o processo de produção da notícia. Da mesma maneira, pensa-se que, ao destacar o uso da inteligência artificial, a isenção da organização estaria resguardada.

Esse discurso ignora que, por trás da adoção de tais práticas e da produção jornalística, estão sujeitos que as operam, carregados de subjetividades que orientam suas atividades, por mais que busquem uma objetividade. Nesse sentido, ser transparente sobre o uso da inteligência artificial na prática jornalística não significa que a organização está sendo imparcial ou neutra.

Como destaca o guia O mínimo que um jornalista precisa saber sobre Inteligência Artificial para começar 2024, criado pelo Farol Jornalismo, “assim como algoritmos de redes sociais e motores de pesquisa, LLMs [sigla em inglês para grandes modelos de linguagem] não são neutros: reproduzem preconceitos e estereótipos de seus autores e refletem a falta de diversidade das organizações que os disponibilizam”. Estarmos atentos a essas questões na prática jornalística implica diretamente na qualidade das informações – que devem ser relevantes, contextualizadas e plurais para a sociedade. É com esse cuidado que se constrói um jornalismo comprometido, de fato, com a transparência e o interesse público.
Texto publicado originalmente em objETHOS.
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Kalianny Bezerra é doutoranda no PPGJor/UFSC e pesquisadora do objETHOS

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