ALEXA SALOMÃO
FOLHAPRESS
No mercado financeiro brasileiro, o tema segue pacificado, mas no mundo dos fundos globais o debate esquentou nesta semana. Causa divergências a reestruturação sugerida pela família Batista para a JBS, maior empresa de proteína animal do mundo e o coração dos negócios da holding J&F Investimentos, controlada pelos irmãos Joesley e Wesley.
As mudanças, que serão avaliadas pelos minoritários nesta sexta-feira (23), projetam uma escalada de ganhos financeiros para os acionistas porque incluem dupla listagem a partir da NYSE, bolsa de Nova York, a que mais movimenta dinheiro no mundo. Documentos divulgados pela companhia nesta quinta (22) indicam, por enquanto, uma votação apertada, com 52% dos votos até agora em oposição ao plano.
As alterações dependem de uma reestruturação internacional que mexe na governança: muda a sede para o exterior e concentra o poder de decisão nos controladores.
Pela proposta, serão instituídas novas empresas: uma na Holanda (JBS NV), sede da companhia e emissora das ações, outra em Luxemburgo (LuxCo) e uma terceira no Brasil, a Brazil HoldCo (veja detalhes das mudanças no infografia).
A es trutura foi qualificada como muito inteligente por especialistas em organização societária. Aproveita, por exemplo, acordos internacionais com a Holanda, que evitam bitributação, e a legislação de Luxemburgo, flexível para holdings. Ao mesmo tempo, não dá um cavalo de pau tributário, transferindo subsidiárias para o exterior, o que poderia atrair animosidade à Receita Federal do Brasil.
“Em linhas gerais, é um modelo de planejamento societário e tributário muito bem estruturado, similar ao adotado por outras empresas globais”, explica José Andrés Lopes da Costa, sócio do DCLC Advogados.
O ponto de divergência gira em torno dos efeitos da operação em Bolsas. A JBS NV, da Holanda, vai emitir duas classes de ações, a Classe A (com 1 voto por ação), que será listada em Nova York e no Brasil, via BDRs (recibos depositários de ações), e a Classe B (com 10 votos por ação), não negociável e que tende a ficar concentrada nas mãos dos Batista.
Na relação de poder econômico nada muda para os minoritários. Mas a participação dos Batistas medida pelo poder político de voto aumenta. Passará de cerca de metade para algo entre 83% e 85% nas tomadas de decisões.
Concluída a transação, as ações ordinárias da JBS S.A. não serão mais listadas na B3 ou em qualquer outra Bolsa. A JBS S.A. se tornará uma subsidiária integral da Brazil HoldCo.
Minoritários podem pleitear a conversão para a Classe B, dentro de algumas regras, até 31 de dezembro de 2026. Como a Classe B não será negociada em Bolsa, então, está meio dado que eles vão preferir a Classe A. A frase no mercado é: investidor compra para negociar, não para guardar.
No mercado de capitais, um lado diz que não há surpresa aí. Outros empresários fazem gestão via ações especiais, na proporção de 10 por um, especialmente na área de tecnologia, e já a partir dos IPOs (termo em inglês para ofertas públicas iniciais). É assim que Mark Zuckerberg tem controle total da Meta, por exemplo.
Outros lembram que família Tyson, concorrente da JBS, tem super ação e vem sendo pressionada por fundos para desistir desse modelo. Há também empresas de commodity que chegam a ter capital pulverizado, caso da mineradora Vale.
No mercado financeiro brasileiro, quem chamou a atenção para concentração foi a Genial Investimentos.
O analista Igor Guedes manteve a recomendação de compra por causa dos inequívocos ganhos econômicos, mas explicou que a concentração pelo super voto é um dado técnico, e o minoritário precisa ter conhecimento de todos os efeitos da reestruturação.
“A formatação proposta dá ao minoritário a valorização das ações e concentra ainda mais o poder de controle. Como diz o nome do nosso relatório, é uma escolha entre uma coisa ou outra: não dá para ter as duas”, afirma.
Em nota enviada à reportagem, a JBS ainda reforçou que fundadores são vitais para a saúde de suas empresas, fazendo referência ao caso em que Steve Jobs foi expulso da Apple por executivos e chamado de volta quando a empresa estava à beira da falência, em 1997.
“Exato dez anos depois, Jobs lançava o iPhone”, destaca o texto da companhia. “No caso da indústria de proteína animal, pela complexidade do negócio, é ainda mais evidente a importância de um controlador que entenda do ramo e que saiba lidar com as sazonalidades, custos altos e margens apertadas.”
A discussão sobre o assunto subiu de tom após a divulgação de relatórios do ISS (Institutional Shareholder Services) e da Glass, Lewis & Co, duas das principais consultorias globais em governança corporativa e votação por procuração (proxy advisory). Elas acompanham assembleias pelo mundo e avaliam o posicionamento ESG (sigla em inglês para boas práticas ambientais, sociais e de governanças) -e ambas recomendaram aos minoritários da JBS que rejeitem a reestruturação.
“A proposta de uma estrutura com duas classes de ações é problemática, pois reduziria significativamente o poder de voto dos minoritários, ao mesmo tempo em que perpetuaria o controle da família Batista, mesmo no caso de sua participação econômica na JBS ser significativamente reduzida”, diz o ISS em seu relatório.
“Embora a JBS tenha apresentado uma justificativa plausível para a listagem de suas ações na NYSE, os motivos para a reincorporação na Holanda e para a estrutura com duas classes de ações com direitos de voto desiguais não são convincentes, considerando os prejuízos para os acionistas minoritários.”
O posicionamento gerou reações. Na segunda (19), fundo Capital Management, um minoritária da JBS, contrapôs as críticas em carta que enviou à SEC (Securities and Exchange Commission), órgão regulador do mercado americano. Afirmou, por exemplo, que a supervisão regulatória dos Estados Unidos reforça os mecanismos de proteção e que ISS e Glass omitiram os ganhos bilionários da operação.
Também solicitou uma investigação sobre as recomendações, alegando que podem refletir considerações ideológicas. O Capital alegou que ambas consultorias recebem dinheiro dos chamados fundos ESG, e que representantes dessa categoria de investidores tentam -e não conseguem-, bloquear a dupla listagem.
A JBS reforçou essa posição: “A recomendação do ISS está desalinhada com os interesses de longo prazo dos acionistas, ao contrário da visão de outras organizações do mercado financeiro, como Bank of America, BTG, Goldman Sachs e JPMorgan”, afirma a companhia.
Entidades de defesa do meio ambiente e da ética empresarial não escondem que são contra operação. Incluem-se também alguns parlamentares americanos, que estranharam a Pilgrim’s Pride, subsidiária da JBS, ser a maior doadora de campanha de Donald Trump.
Esse segmento vê problemas na conduta dos controladores e não quer que acessem o enorme volume de capital que a listagem tende a destravar. Questionam, por exemplo, o envolvimento em escândalos de corrupção, inclusive com delação premiada, em casos que foram encerrados com o pagamento de multas no Brasil e nos Estados Unidos.
O simbólico Joesley Day, em 17 de maio de 2017, por exemplo, quando se soube da delação, penalizou a ação da JBS com uma sequência de quedas, provocando até a interrupção da B3.
“Permitir que a JBS seja listada na Bolsa de Valores de Nova York envia a mensagem errada -de que empresas que se beneficiam de um longo histórico de corrupção, abuso ambiental e manipulação política por parte de seus acionistas controladores podem ter acesso aos mercados globais de capitais com pouca responsabilidade”, diz a CEO global da Transparência Internacional, Maíra Martini, em nota.
“Os investidores merecem transparência. A JBS deveria estar sob escrutínio mais rigoroso, e não ser recompensada com prestígio.”
Também em nota, a JBS respondeu que, como já é uma companhia com registro público de dívida na SEC, está sujeita às exigências locais e rebateu as críticas.
“A Transparência Internacional não é observadora isenta da dupla listagem da JBS nem de qualquer outro assunto relacionado à empresa. A J&F, acionista controladora da JBS, recusou proposta para que a ONG gerisse um fundo com recursos no âmbito de seu acordo de leniência.”
Na avenida Faria Lima, coração financeiro do Brasil, essa discussão não está na agenda. O que se repete é que há confiança na capacidade de gestão dos Batistas. “Os escândalos ficaram no passado. A página foi virada”, diz o economista Álvaro Bandeira, um dos mais experientes do mercado financeiro nacional.
O analista Guilherme Palhares, do Banco Santander, resume a percepção ao explicar que as duas classes de ações funcionam como uma segurança para família: sem perder o controle, pode acessar mais capital e manter a agilidade para decidir fusões e aquisições, base da estratégia que transformou o açougue familiar em Goiás na companhia com 300 mil clientes em 180 países e 280 mil colaboradores no mundo.
Como régua para medir essa avaliação, o preço da ação indica uma expectativa positiva superlativa.
Desde que o BNDES deu sinal verde, em 17 de março, a ação valorizou 28,5%. A possibilidade de ganhos financeiros está fartamente descrita em relatórios de diferentes instituições financeiras (lei em destaque alguns ganhos).
Faz um tempo os Batistas nutrem a ambição da listagem nos EUA. O desejo foi ventilado já em 2009, mas não foi para frente com a piora da crise internacional. Em 2016, BNDESPar, acionista minoritária relevante, exerceu direito de veto para deter o que na época foi chamado de desnacionalização da empresa. A ideia voltou ao radar pouco antes da pandemia, mas ficou em banho-maria.
O diretor Jurídico do BNDES, Walter Baère, explicou à reportagem que o sinal verde agora foi motivado pelo aperfeiçoamento da proposta. Desta vez, por exemplo, haverá dupla listagem, com BDRs na B3, e não ocorrerá cisão da companhia e transferência de ativos para o exterior, como previsto antes. O banco também está de olho nas vantagens financeiras.
“Esse investimento precisa ser colocado em perspectiva histórica. Foi um dos mais bem-sucedidos do banco, e representa agora um investimento maduro. A gente faz gestão de patrimônio público e zela por maximizar o retorno para banco e para a sociedade.”
“O preço médio de entrada na JBS foi R$ 8,24 [por ação]. Se a gente pegar só a valorização recente, a partir do anúncio da dupla listagem, considerando a nossa participação, o banco ganhou R$ 2,7 bilhões só no primeiro dia -ou seja, a operação tende a destravar valor.” O banco já vendeu algumas ações.
Ganhos com a listagem em NY
– A JBS já é global e com forte presença nos EUA. Metade da receita, cerca de US$ 78 bilhões, é gerada lá. Com a reestruturação, ganha relevância também no mercado de capitais americano, que é substancialmente maior.
– Tende a melhorar a sua precificação (conhecida como valuation), que é a estimativa de quanto a JBS vale, considerando diferentes fatores, incluindo valor de mercado hoje e capacidade de geração de caixa ao longo do tempo. Apesar de ser a maior do mundo, sua valuation hoje é quase metade da atribuída à Tyson. A estimativa do mercado é que a operação pode, no mínimo, equiparar os indicadores entre elas, elevando o preço da ação da JBS para casa de R$ 75. Se for negada, como sugerido pelas consultorias, a ação perde o que já ganhou, e tende a ir para R$ 32. No pregão desta quarta (21), fechou em R$ 42.
– Outro benefício é a possibilidade de a empresa ser incluída em índices da NYSE. Já é público o interesse em compor o S&P 500, que pode automaticamente aumentar a demanda pelas ações. A JBS entraria no radar de fundos passivos (que não escolhem ações, compram as de empresas que estão na composição de um índice) e fundos ETFs (Exchange Traded Funds, fundos passivos negociados na bolsa como se fossem uma ação).
– O efeito dominó de ganhos incluiria ainda redução do custo de capital.