Aprovado sob a justificativa de corrigir a sub-representação populacional na Câmara dos Deputados, o projeto que amplia o número de parlamentares de 513 para 531 tem potencial para ser questionado no Supremo Tribunal Federal (STF). Juristas e cientistas políticos avaliam que, embora o aumento de cadeiras seja uma prerrogativa do Congresso, a forma como elas foram distribuídas desrespeita o critério de proporcionalidade entre população e representação dos Estados, previsto na Constituição e no texto da própria lei aprovada pela Casa, o que abre caminho para contestações no Supremo sobre a constitucionalidade da norma.
A análise do caso, porém, não se restringe ao campo jurídico: revisar uma decisão do Congresso traria custos políticos e acirraria ainda mais a tensão entre os Poderes.
O projeto foi apresentado como resposta à decisão do STF, que em 2023 declarou a omissão do Congresso em revisar a composição das bancadas estaduais com base nos dados do Censo de 2022. A Corte, então, determinou que fosse atualizada até junho de 2025 a representação dos Estados na Câmara, de maneira proporcional à população, conforme prevê a Constituição. A última atualização foi feita em 1994.
Pela regra constitucional, nenhum Estado pode ter menos de 8 deputados, e o mais populoso, São Paulo, deve ter no máximo 70. Dentro desses limites, o número de cadeiras deve ser ajustado conforme a população de cada unidade da federação. Foi com base nesse princípio que o STF determinou a redistribuição das 513 cadeiras já existentes, e não o aumento do total. Para cumprir esse critério, seria necessário tirar cadeiras de Estados que perderam peso populacional e repassá-las aos que mais cresceram.
O problema, explica o cientista político da FGV Cláudio Couto, é que isso não foi feito. Para evitar o desgaste político de retirar cadeiras de determinados Estados, o Congresso optou por ampliar o número total de deputados. A articulação, liderada pelo presidente da Comissão de Constituição e Justiça, Hugo Motta (Republicanos-PB), garantiu que todas as bancadas fossem mantidas. As novas cadeiras foram distribuídas apenas a Estados que cresceram populacionalmente, sem mexer nos que perderam representatividade. Na prática, o Congresso preservou interesses políticos e usou o Censo apenas como justificativa para ampliar bancadas já infladas, sem corrigir desequilíbrios.
O resultado é a manutenção de desequilíbrios históricos na representação. Estados super-representados, como Roraima, seguem com oito deputados, mesmo concentrando apenas 0,3% da população. Já São Paulo, com 22% dos habitantes do País, continua com apenas 13,7% das cadeiras. O Rio de Janeiro, por sua vez, mesmo tendo perdido participação relativa na população, manteve suas 46 cadeiras, quando deveria ter perdido quatro, segundo a fórmula proporcional prevista na lei. Enquanto isso, Estados como Pará e Ceará, que deveriam ter sido mais beneficiados, receberam acréscimos tímidos, insuficientes para reequilibrar a representação.
Esse desvio do critério de proporcionalidade, avalia Couto, é o que abre espaço para questionamentos no Judiciário. Na mesma linha, o professor Luiz Gomes Esteves, do Insper, aponta que o problema está na forma como o projeto foi conduzido, ignorando a diretriz central do STF, que previa a correção da representação dos Estados conforme o tamanho de suas populações. “A escolha por ampliar o total de deputados, sem revisar a lógica da distribuição, pode abrir margem para que a lei seja contestada no próprio Supremo”, afirma. Por outro lado, o jurista reforça que o aumento no número de deputados é uma prerrogativa legítima do Congresso e, por si só, não deve ser contestado.
No campo político, a possibilidade de judicialização também está no radar. Um dos partidos que estudam acionar o Supremo contra a medida é o PSOL. O deputado federal Chico Alencar (PSOL-RJ) afirma que, ao impedir que Estados percam cadeiras mesmo quando perdem população, o projeto cristaliza um desequilíbrio federativo.
Para o parlamentar, trata-se de mais uma tentativa de autopreservação de mandatos, “descolada da realidade do País”. “Num momento em que o Brasil enfrenta desafios graves, o foco deveria estar na qualidade da representação, não na sua quantidade”, diz.
Lara Mesquita, cientista política da FGV, chama atenção para a execução concreta da proposta. Embora o projeto traga uma fórmula para redistribuições futuras, ela não foi aplicada agora, justamente no momento em que a proporcionalidade precisava ser corrigida. A distribuição das 18 novas cadeiras ocorreu antes da entrada em vigor da regra, sem qualquer justificativa técnica pública. “O problema é que, ao fazer isso, ele manteve uma distribuição que não respeita a proporcionalidade entre população e representação”, afirma.
Mesmo os Estados que ganharam assentos agora não foram contemplados com base em um cálculo técnico claro, mas por uma escolha política orientada a evitar perdas. Para a pesquisadora, essa condução compromete o objetivo central da decisão do STF, que era justamente corrigir a distorção entre população e número de cadeiras por Estado.
Caso essa tese avance, o Supremo poderá ser provocado a declarar a norma inconstitucional, exigindo que a Câmara delibere novamente sobre o tema. Em um cenário de normalidade institucional, esse tipo de interferência seria pouco provável, avalia o professor de ciência política do Insper Leandro Consentino. No entanto, o atual clima de tensão entre os Poderes pode mudar esse cálculo. “Dado o histórico recente de desgaste entre Congresso e Supremo, essa pode ser mais uma carta no jogo institucional, uma reação do STF frente às tentativas de limitar seus poderes”, afirma.
Para Consentino, mais do que uma disputa sobre números e fórmulas, o impasse escancara a dificuldade do Congresso em rever distorções históricas de representação e coloca o Supremo diante de mais uma encruzilhada entre a aplicação técnica da Constituição e os custos políticos de uma intervenção institucional. “Como não estamos vivendo tempos normais, hoje marcados por embates entre os Poderes, não dá para prever. Pode haver uma reviravolta”, conclui.
Estadão Conteúdo