
(Foto: Ricardo Stuckert / PR)
Lula da Silva participou, na Praça Vermelha em Moscou, da comemoração dos 80 anos do Dia da Vitória, isto é, a vitória da União Soviética sobre a Alemanha nazista na Segunda Guerra Mundial. Nesta data, em 1945, o Exército Vermelho anunciou a rendição incondicional dos alemães, pondo fim ao conflito que devastou a Europa ocidental e matou dezenas de milhões de pessoas por mais de seis anos. O aniversário da derrota do Terceiro Reich deveria ser saudado em todo o planeta. Talvez assim o fosse, se a comemoração tivesse ocorrido em solo norte-americano ou europeu.
A presença de Lula em solo russo tem sido representada pela imprensa brasileira como uma demonstração de “uma atitude diplomática independente e incorreta, em termos de respeito às democracias” – é o que diz Ricardo Rangel, o analista político ouvido pelo portal G1. É uma perspectiva compartilhada por André Perfeito, economista político, igualmente ouvido pelo mesmo portal de notícias da Globo: “Fica um clima estranho na diplomacia internacional. Não faz sentido fazer esse contato com um país autocrata neste momento”. É verdade: as análises desses cientistas políticos estão sustentadas no contexto da guerra entre Rússia e Ucrânia. Mas é interessante observar mais de perto a análise de Rangel na Globonews:
[Em Moscou, Lula] está cercado de liberticidas, de ditadores, o Miguel Canel, de Cuba; o Maduro, o próprio Xi Jinping. É um lugar onde a gente não quer estar – não deveria estar. Ainda tem a questão simbólica muito grave: o comportamento do Putin em relação à Ucrânia é exatamente igual ao do Hitler em relação à Tchecoslováquia. Há muitos erros diplomáticos. Teve sobre Israel também; ele falou muitas coisas equivocadas.
Rangel não revela quais seriam essas “coisas equivocadas” em relação a Israel. Mas sabemos que, para o analista, “a tese do genocídio em Gaza é pior do que parece”. É esse o título que ele dá a um artigo publicado na Veja, em janeiro de 2024: “puxar a carta do ‘genocídio’ é um erro grave” cometido por África do Sul e Brasil. Genocídio foi o crime pelo qual “os judeus foram vítimas” e “aplicar a palavra para caracterizar atos dos próprios judeus é de enorme empáfia”.
Os termos empregados pelo analista para repudiar a presença do presidente na comemoração da vitória contra o nazismo têm um tom de repugnância: o Brasil, como uma democracia, não deveria estar ao lado da Rússia, China, Cuba e Venezuela. São ditaduras (e, ao que parece, leprosas). A indignação se daria porque a Rússia protagoniza um papel de agressora. Lula precisaria, na verdade, juntar-se à Europa Ocidental e repudiar as ações de Putin, que ataca a Ucrânia. Não ter um posicionamento independente! Ora! Mas, ao mesmo tempo, o cientista político ouvido pela Globonews afirma que Lula se equivoca ao criticar as ações de Israel – um massacre de crianças e mulheres palestinas. Já vimos o porquê Rangel critica a oposição do presidente às ações de Netanyahu. O que ele faz não é tão grave quanto o presidente russo – afinal, o que caracteriza as ações executadas não são as suas formas, proporções e conteúdo, mas quem as executa. Ademais, é um “erro grave” e uma “enorme empáfia” falar em genocídio contra esse povo, senão os judeus. Nem os palestinos, nem os negros, nem os povos indígenas sofrem algo parecido. Nos vemos, assim, na presença de um mundo distorcido.
O mesmo mito da democracia liberal x ditadura, fundamentalismo etc. Aqui quem se faz ausente é a História, mas também a própria política. Cria-se um mundo no qual as democracias estadunidense e europeia são puras e virtuosas; não há colonialismo, imperialismo e extermínio em solos africano e asiático – por isso, apenas os judeus experimentaram algo na magnitude de um genocídio. O que se vê na Ucrânia é digno de crítica; deve-se romper ou diminuir contato com o agressor; mas o que ocorre em Gaza não é tão grave; é preciso seguir normalmente nas relações com Israel e os países ocidentais que lhes armam e financiam. Até a forma de criticar precisa ser pomposa!
Podemos nos perguntar se as reflexões feitas pelos convidados refletem o pensamento do veículo. Os jornalistas da Globonews seguem uma linha comum. Valdo Cruz: “Não vejo que seja positivo que um país que é democrático [Brasil] participar de uma cerimônia dessa, em que o motivo é comemorar a vitória sobre um país que era expansionista e que fazia um crime de genocídio, com país que faz coisas semelhantes invadindo a Ucrânia, Lula pisa na bola”.
A sua colega Camila Bonfim parece indignada: “Essa agenda de Lula na Rússia é uma das mais condenáveis entre dez analistas internacionais ouvidos. O fio da história, nem precisa entrar em análise ainda, já nos mostra a visão errada que Lula tem perpetuado”. Realmente, não há nesses argumentos nem análise, nem história. Para a jornalista, Lula participa das tentativas de Putin de “reescrever a história com as suas narrativas; faz isso em relação à Segunda Guerra Mundial”. É “uma situação vergonhosa para o Brasil […]. Uma guerra nunca é uma decisão de dois países!” – o quê?
Bonfim entende como “história” o desenrolar de uma série de eventos em ordem cronológica; assim, segue rememorando falas de Lula desde o início da guerra até a sua presença na Praça Vermelha. Essa é a história de setores da grande imprensa brasileira: flashbacks datados, sob uma perspectiva maniqueísta. Não há complexidades nesse mundo. É um mundo mitológico. Vejamos o que o próprio presidente disse à imprensa em Moscou: “A Rússia é um bom parceiro comercial; a minha vinda aqui é para discutir comércio. Outra coisa importante é a questão da Segunda Guerra Mundial. Este é um país, de todos que participaram com os Aliados, que mais perdeu gente; perdeu praticamente 26 milhões de pessoas; neste país chegou um momento em que a população, a juventude, estava praticamente dizimada. O Dia da Vitória é comemorado em todo o território russo”. Na oportunidade, Lula ainda reafirmou o seu posicionamento contra a ocupação da Ucrânia.
O primeiro repórter a dirigir uma pergunta ao presidente, talvez já de olho em toda a movimentação da imprensa brasileira, trouxe ao debate uma questão de extrema importância, mas que não foi alvo de críticas por parte dos grandes veículos: “Há poucos dias, o secretário de defesa dos EUA apresentou ou reafirmou uma visão do presidente Trump de que os EUA precisam retomar o controle do seu quintal, disse ele, se referindo à América Latina. Qual é a sua avaliação dessa ideia?”. Não encontrei nenhuma análise crítica por parte de jornalista nem dos seus convidados atinentes a essa perspectiva imperialista dos EUA. Em meio a perguntas que fecham a geopolítica no conflito na Ucrânia, o presidente amplia o olhar:
A única coisa que interessa neste momento é discutir a volta à normalidade no mundo. Não é só aqui. É na Faixa de Gaza também. Aqui, dois Estados estão em guerra. Na Faixa de Gaza, é um genocídio de um exército muito bem preparado contra mulheres e crianças, a pretexto de matar terrorista. Já houve caso de explodir hospital e não ter um terrorista. Só tinha mulher e criança.
O que se vê em veículos da grande mídia é uma tentativa hostil de ignorar a importância histórica e social de um evento que marca oito décadas da derrota do hitlerismo. Lula não deveria se fazer presente num país cujo exército protagonizou a vitória sobre o Terceiro Reich e ajudou o mundo a se livrar de Hitler – vale lembrar: produto do pensamento racial e do imperialismo europeu. Para os principais jornalistas, aquele seria apenas um local de ditaduras, China, Cuba, Venezuela etc. Ignora-se, assim, a História, a política, a economia e a geopolítica. Análise divergente tem o professor Leonardo Trevisan: “Lula percebeu com clareza que neste momento, até para os interesses econômicos brasileiros, não há nenhuma vantagem de uma briga com um ou outro lado. A diplomacia brasileira tem uma posição de equilíbrio. Nós temos uma posição de defender os interesses nacionais. É isso que está acontecendo”.
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Osnan Silva de Souza é Doutorando em História pela Unicamp.
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