
Revista Realidade especial sobre a Amazônia (Foto: Arquivo Pessoal)
Revisitando meus papéis antigos, jornais alternativos: Opinião, Movimento, Em Tempo, Versus, Pasquim, entre tantos outros que fizeram a cabeça e a formação jornalística de minha geração, deparo-me com esta preciosidade da revista Realidade de outubro de 1972. Lançada há exatos 53 anos pela Editora Abril e dedicada inteiramente à Amazônia.
Agora, com a COP-30 (30ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudança do Clima), no Pará, em novembro de 2025, é necessário e urgente rever suas narrativas criativas, geralmente em primeira pessoa, com estilo de jornalismo literário e investigativo. Em tempos de textos rápidos, de redes sociais, com raras exceções, essencial recuperar um pouco do jornalismo autoral, fora dos cânones da objetividade.
Em momentos complexos como os que vivemos, de usos cada vez mais frequentes, sem reflexão, sem visão crítica de ferramentas da Inteligência Artificial (IA), importante retomar as ideias do sociólogo e antropólogo francês Edgar Morin, em seu pensamento complexo sobre a humanidade e a educação do futuro. Como enfatiza Morin, “é preciso aprender a enfrentar a incerteza, já que vivemos em uma época de mudanças em que os valores são ambivalentes, em que tudo é ligado” (MORIN, 2000, p. 84).
Os sete saberes necessários para a educação do futuro amplamente defendidos por Morin se encaixam bem no exercício profissional do Jornalismo. São eles: ensinar o que é o conhecimento; os princípios do conhecimento relevante; a condição humana; a compreensão; enfrentar a incerteza e o inesperado; uma consciência planetária e a ética da humanidade (antropo-ética). Esses conhecimentos nunca foram tão importantes como atuais. Não apenas na área de Educação formal, como também no Jornalismo, que promove a educação informal. O conhecimento que se produz e circula diariamente pelas notícias jornalísticas, em tempos de desinformação, seja pela imprensa tradicional ou em diferentes plataformas de redes sociais, continua essencial. Entretanto, contaminado pelo uso da IA, sem revisão crítica, sem a presença humana, exige cada vez mais recuperar, também, os ideais de pensamento crítico de Paulo Freire (1921-1997), para quem a leitura crítica do mundo precede a leitura da palavra.
Não menos importante, em momentos de mudanças climáticas aceleradas, sem presença de políticas públicas ativas, valorizar o esforço de várias instituições independentes como Greenpeace Brasil, Instituto Socioambiental (ISA), SOS Mata Atlântica, Instituto Envolverde, ECO, Rede de Jornalismo Ambiental e Sumaúma (Jornalismo do Centro do Mundo. Essas ONGs, ao lado de vários podcasts, lutam diariamente, com textos em profundidade de denúncia e análise sobre os problemas ambientais. Entretanto, embora fundamentais, são ainda insuficientes face à magnitude dos problemas latentes, que se avolumam cotidianamente.
A inserção da Política Nacional de Educação Ambiental nas escolas, implementada em 1999 pela lei n. 9795, tem possibilitado avanços importantes na percepção dos estudantes sobre a crise climática que o Brasil e o mundo enfrentam. Entretanto, não menos importante é a educação ambiental da sociedade em geral para cobrar ações mais efetivas do poder público para aliviar os efeitos das mudanças climáticas. Neste sentido, o papel do jornalismo em geral e ambiental em particular é essencial para uma melhor compreensão da realidade complexa em que vivemos, que exige ações imediatas do poder público.
O Planeta Terra dá sinais de exaustão e aponta caminhos sem retorno se ações concretas, a nível mundial, não forem tomadas de imediato. E a COP-30, no Brasil, se apresenta como uma oportunidade impar para se não evitar, pelo menos desacelerar os efeitos das mudanças climáticas. Olhar para a Amazônia é olhar para o mundo.
Saberes e aprendizados
Mas o que a revista especial Realidade sobre a Amazônia, produzida há meio século, pode nos ensinar, hoje? Como as reportagens de editores, repórteres e fotógrafos que fizeram história, ao desnudarem a realidade local, há meio século, podem ajudar? A edição sobre a Amazônia, de outubro de 1972, traz 328 páginas recheadas de memórias da Amazônia em reportagens in loco, realizadas durante meses de apuração e depuração dos fatos. Seja sobrevoando áreas pouco vistas, percorrendo estradas de difícil acesso ou viajando de trem, barco ou carro, as múltiplas visões e percepções sobe a realidade da Amazônia foram registradas nesta edição histórica.

(Capa da revista Realidade sobre a Amazônia – reprodução)
Impossível não notar, também, as inúmeras páginas de publicidade que ajudaram a pagar a empreitada financiada por Victor Civita, fundador da Editora Abril. Na Carta ao Editor em que apresenta o conteúdo da revista, Civita fala dos cinco meses de viagem da equipe à Amazônia, em um projeto ousado, que pretendia desbravar a região e responder ao Brasil e ao mundo a realidade local e revelar algumas das muitas crenças que permeavam a Amazônia naquele momento, tais como:
- 67% das pessoas acreditam que a Amazônia está ameaçada de cair sob o controle estrangeiro;
- 42% acham que a Cabanagem é um estilo de residência amazônica (é o nome da mais sangrenta revolta política da história brasileira);
- 46% pensam que a Amazônia tem menos de 30% da área do país (tem 59,4%);
- 61% julgam que a Transamazônica passa por dentro ou perto de Manaus (são tão distantes quanto o Rio e São Paulo);
- 47% supõem que hoje poderiam ir de automóvel de Belém a Manaus, ou de Santarém a Belém (54%), ou de São Paulo a Manaus (39%) — quando, por terra, Santarém e Manaus são isoladas do resto do país.
Para desvendar essas crenças e muitos dos mistérios que rondavam e ainda rondam a Amazônia, Victor Civita, fundador da Abril, em 1950, investiu tempo e recursos, no que ele denominou “nossa mais longa, custosa e apaixonada reportagem”. Veja o link da revista Realidade de outubro de 1972 sobre a Amazônia.
Nas páginas da revista, a partir de reportagens e ilustrações de fôlego, é possível conhecer e entender um pouco da realidade local, que tem muito ainda a ser desbravada. Participaram das entrevistas, na época, diferentes personalidades e autoridades civis e militares, como Rodrigo Octávio Mourão Filho, Ruy Philips, Ramiro Nazaré, Armando Mendes, Djalma Batista, Yoshiaki Nishimukai, Carlos Weber, Moraes Rego, Giocondo Grotti, Francisco Meirelles, Bandeira de Mello, Evaldo de Abreu, Paulo Nogueira Neto, Mario Andreazza e Jarbas Passarinho.
A edição traz 18 reportagens temáticas, fartamente ilustradas com fotos e mapas da região. Os títulos são: “Realidade da Amazônia”; “Viagem ao planeta do verde, da água e do sol”; “A nossa vida nos trópicos”; “Você já imaginou o Brasil sem a Amazônia?”; “Amazônia, ontem”; “Amazônia, hoje”; “A fronteira da aventura”; “Amazônia, amanhã’; “A vida que vem do verde”; “Morreram as cidades e o homem – na Amazônia encontra”; “Imagens de um massacre”; “A lei proíbe. Mas quem cumpre?”; “Os estrangeiros (um fato) roubam a Amazônia (uma opinião) roubam mesmo? (uma questão)”; “Dizem que tem um exército secreto no País. O que ele tem é um País”; “A última chance dos últimos guerreiros”; “A busca da terra (inferno ou paraíso) prometida”; “Amazônia. Indicações”; “Viva a Amazônia”.
À época, a revista Realidade tinha na sua direção o jornalista Milton Coelho da Graça. A edição especial sobre a Amazônia contou com os seguintes profissionais: Editor: Raimundo Rodrigues Pereira; Editores-assistentes: Hamilton Almeida Filho e José P. Martinez; Jaime Figuerola (arte) e Luis L. Fontes (secretário). Repórteres: Carlos Azevedo, Domingos Meirelles, Octávio Riveiro, J.P. Martinez, Hamilton A, Filho, R.R. Pereira, Norma Freire, Liz Carlos Bardavill. Como fotógrafos: Maureen Bisiliat, Cláudia Andujar, Geprge Love, Amâncio Chiodi, Darcy Trigo e Jean Solari.
Repassar página por página, reler seu conteúdo, olhar suas fotos e também a publicidade da época é uma viagem também fascinante. Saudades dos tempos de grandes reportagens que não se limitavam às revistas, mas que também estavam presentes nos jornais da época, alguns que infelizmente despareceram, como Correio da Manhã, Jornal do Brasil e Última Hora…
E hoje? Como conciliar apurações in loco, reportagens em tempo real, com conteúdos compilados pela internet, entrevistas realizadas pelo zap ou por e-mail, em contraponto às necessidades de realidades complexas? Em tempos de distopia, como recuperar reportagens de fôlego, críticas, interpretativas, analíticas, que o momento exige para que as pessoas possam, efetivamente, fazer escolhas adequadas à sociedade moderna, cheia de contradições e desafios?
E afinal, que mistérios ainda rondam a Amazônia? Quais foram desvendados e quantos ainda por fazer? De que forma a região que atravessa fronteiras do Brasil ao Peru, Colômbia, Venezuela, Guiana, Suriname e Guiana Francesa foi ocupada, principalmente durante o governo militar, que abriu as entranhas da região à exploração predatória? Quais são hoje, as riquezas da Amazônia? O que resta delas? Como foram e estão sendo usurpadas? De que forma a mineração e outras atividades predatórias estão comprometendo o futuro da Amazônia e seu legado para o mundo? O que é possível e preciso preservar? De que forma as políticas públicas ou a ausência delas estão comprometendo a biodiversidade da região? Qual é sua influência para o clima mundial? Como a COP-30 pode ajudar? Quais são as expectativas? O que ainda pode ser feito e como?
A complexidade dos problemas e desafios da Amazônia são imensos. Como a realização da COP-30 no Pará pode auxiliar a dar maior visibilidade aos problemas existentes para mitigar questões que permeiam a realidade brasileira e internacional? Temas como agenda climática, mineração, exploração de petróleo na Foz da Amazônia, no Amapá, populações indígenas e ribeirinhas, preservação do ecossistema/biodiversidade deverão ser abordadas ad nauseum…
Sintomático que o presidente da COP-30, o embaixador André Corrêa do Lago, anuncie várias medidas para o evento, mas deixe de fora o combate aos combustíveis fósseis (fonte de quase 80% dos gases de efeito estufa) e, particularmente, a exploração de petróleo na Amazônia, que divide opiniões do próprio governo e da sociedade em geral. As contradições são muitas.
Entre o discurso e a práxis, autoridades brasileiras e internacionais, muito ainda a ser feito. Não são poucos os alertas de pesquisadores e de populações indígenas. Mas suas vozes raramente são ouvidas e respeitadas. Assim, fica evidente que não basta ouvir os diferentes integrantes brasileiros e internacionais que participarão da COP-30. Não basta, mais uma vez, a renovação de promessas esgarçadas pelos adiamentos sucessivos de cumprimentos de plataformas esvaziadas pelo tempo e pela ausência de cumprimento de ações concretas elaboradas em outros encontros internacionais.
É preciso ir além. Revisitar, percorrer as estradas, as águas, as terras, rever a floresta e as cidades e recontar as histórias, dar voz aos moradores da extensa Amazônia como fez a revista Realidade, há exatos 53 anos. Mas há disposição e desejo de re-explorar, com reportagens in loco, na região para escancarar, mais uma vez seus reais problemas sociais e políticos? Para isso é preciso estudar muito a região, reler a edição da Realidade de outubro de 1972, rever suas mazelas e expectativas. Examinar as legislações ambientais e internacionais parcialmente cumpridas por interesses econômicos e geopolíticos.
Faltam seis meses para a realização da COP-30 e para desvendar as veias abertas da Amazônia. Há tempo para as mudanças necessárias e urgentes sobre a política ambiental? Só o futuro dirá.
Fiquei pensando também no Departamento de Pesquisa do Jornal do Brasil (JB) que também produzia grandes reportagens. Seu exemplo bem-sucedido não foi seguido por outros veículos.
A expectativa do evento é reunir lideranças de 220 países, além da participação de representantes de diversas organizações ambientais e da sociedade civil. Os temas principais a serem debatidos são: 1) Redução de emissões de gases de efeito estufa; 2) Adaptação às mudanças climáticas; 3) Financiamento climático para países em desenvolvimento; 4) Tecnologias de energia renovável e soluções de baixo carbono; 5) Preservação de florestas e biodiversidade e 6) Justiça climática e os impactos sociais das mudanças climáticas.
Para que a cobertura de temas tão complexos, que envolvem relações multilaterais, interesses políticos, econômicos e sociais seja de fato coerente com as necessidades cada vez mais urgentes, cabe aos novos jornalistas, e também aos antigos, às diferentes gerações, especialistas ou não em jornalismo ambiental, se unirem e revisitarem a memória da Amazônia, sua história. Seja relendo esta edição especial, lendo livros, textos, artigos e documentos gerados ao longo dos anos. Tarefa hercúlea, porém urgente.
Essencial, também, fazer a pesquisa de campo. Ir a campo. Revisitar a Amazônia. Hora dos ir além das entrevistas oficiais e convencionais para entender o passado, presente e futuro da Amazônia, que se avizinha predatório.
Hora de cobrança às autoridades nacionais e internacionais pela preservação ambiental, antes que seja tarde. O planeta é um só. O fio é tênue e a responsabilidade dos jornalistas é grande. Afinal, como dizia o historiador francês Fernand Braudel (1902-1985), da História dos Annales, somos historiadores do cotidiano e estamos o tempo todo fazendo, construindo histórias, para o bem e para o mal. E a história não se faz apenas com o tempo presente. É necessário rever o passado, visitar o presente para entender o futuro. O fio entre os tempos é tênue. São três tempos que se sobrepõem. Vivamos, pois, o tempo presente, sem deixar de olhar o passado para melhor compreendermos a realidade atual e podermos, assim, interferir no futuro, se ainda tivermos tempo para isto.
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Graça Caldas é jornalista desde 1969. Atuou em diversos veículos como Jornal do Brasil e Folha de S. Paulo. Graduada em Comunicação Social (UFRJ-1973). Especialista em Jornalismo Científico (Capes, 1982). Especialista em Comunicação Integrada (Fundação Dom Cabral-PUC-BH (1987). Mestre em Comunicação Científica pela UMESP (1988). Doutora em Ciências da Comunicação pela ECA/USP (1995). Pós-Doutora em Política Científica e Tecnológica pelo DPCT do Instituto de Geociências da Unicamp (2008-2009). É pesquisadora colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Divulgação Científica e Cultural do Labjor/IEL/Unicamp. Foi bolsista produtividade do CNPq. Diretora Acadêmica e Administrativa da Associação Brasileira de Jornalismo Científico (ABJC) em várias gestões. Prêmio Pesquisador Sênior Adelmo Genro Filho, SBPJOR (2012). É membro do Conselho Editorial do Jornal da Ciência da SBPC.
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