FERNANDA MENA
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS)
Neste dia 15 de maio de 2025 completam-se 11 anos que a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 320 dorme nas gavetas de ministros do Supremo Tribunal Federal (STF).
A ação protocolada em 2014 pelo PSOL pede a revisão da Lei da Anistia de 1979, que absolveu agentes públicos, militares e civis de crimes considerados políticos cometidos durante a ditadura militar (1964-1985).
Em 2010, o STF havia julgado outra ADPF (153) sobre o tema e reiterou a validade da Lei da Anistia para agentes públicos. Pouco depois, ainda em 2010, o Brasil foi condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) por não investigar o desaparecimento forçado de guerrilheiros do Araguaia com base na Lei da Anistia.
A decisão da corte, que amparou a proposta da ADPF do PSOL, aponta que as disposições da Lei de Anistia são incompatíveis com a Convenção Americana de Direitos Humanos.
Segundo a sentença, o Brasil está descumprindo obrigações internacionais que tratam esses crimes como imprescritíveis e não passíveis de perdão.
O tema ganhou evidência na esteira do sucesso do filme “Ainda Estou Aqui”, de Walter Salles, que conta a história do desaparecimento do ex-deputado Rubens Paiva durante a ditadura e arrebanhou um Oscar e um Globo de Ouro.
“O torturador do meu pai ainda está vivo, morando em Botafogo e recebendo aposentadoria. Dos seis acusados, três já morreram, dois ainda vivem”, disse o escritor Marcelo Rubens Paiva, autor do livro que deu origem ao filme, durante debate no mês passado.
Completam o cenário favorável ao debate da matéria a oposição do Supremo à proposta de anistia dos condenados pelos ataques de 8 de janeiro de 2023, o envolvimento de militares na trama golpista e as decisões recentes dos ministros Edson Fachin, Alexandre de Moraes e Flávio Dino.
Eles trataram de casos ligados aos crimes cometidos durante a ditadura que estavam parados há anos e ganharam repercussão geral. Ou seja, quando forem julgados, a tese da decisão deverá ser seguida pelas outras instâncias do Judiciário.
Fachin acolheu dois recursos do MPF que discutem a responsabilidade de agentes estatais por supostos crimes cometidos no período.
Já Dino tratou de casos de desaparecimento, que ganharam repercussão geral. Segundo o ministro, a Lei de Anistia não se aplicaria a crimes de ocultação de cadáver porque eles se prolongam no tempo, e a lei é restrita a atos cometidos até 1979.
Por fim, Moraes deu status de repercussão geral à análise da aplicação da Lei da Anistia aos crimes de sequestro e cárcere privado cometidos a partir de ação que apura as circunstâncias da morte de Rubens Paiva.
Os casos ainda serão julgados pelo colegiado de ministros.
“Minha hipótese é que a ausência de julgamento da ADPF 320 por tanto tempo fez com que outros ministros buscassem alternativas para levar o tema da anistia para julgamento por meio da repercussão geral dada a esses recursos”, avalia a advogada Eloísa Machado, professora da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e pesquisadora sobre o Supremo.
“Este ano de 2025 tem sido um ano de revolução do tema no STF e parece haver uma forte possibilidade de revisão da Lei de Anistia”, completa.
A ADPF 320 ficou parada por sete anos no gabinete do ministro Luiz Fux para, desde 2021, seguir parada no gabinete do ministro Dias Toffoli.
Ao longo desses anos, procuradores do Ministério Público Federal (MPF) e organizações de direitos humanos que tiveram encontros com os ministros afirmam que ambos confirmaram a importância do tema e afirmaram que colocariam a matéria na pauta do tribunal. Nada aconteceu.
Procurados, Fux e Dias Toffoli não responderam aos questionamentos da reportagem até a conclusão deste texto.
Fux já teve como decoração de seu gabinete a Medalha do Pacificador, uma honraria que recebeu do Exército Brasileiro em 2013 e que já foi concedida ao ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e ao tenente-coronel reformado Sebastião Rodrigues de Moura, o Major Curió, militar envolvido na Guerrilha do Araguaia, um dos episódios mais violentos da repressão.
Dias Toffoli, em 2018, disse não mais se referir ao golpe de 1964 como tal nem como revolução. “Me refiro a movimento de 1964”, disse.
Além disso, o ministro convidou o general Fernando Azevedo, ex-chefe do Estado-Maior do Exército, para assessorá-lo no gabinete da presidência do Supremo por indicação do então comandante do Exército, general Eduardo Villas Bôas.
“O ministro Dias Toffoli se comprometeu a promover um debate sobre a ADPF 320 no segundo semestre de 2024 por meio de audiências públicas. Mas, no final do ano passado, mandamos uma carta para ele com questionamentos sobre isso e não obtivemos resposta”, conta Rogério Sottili, diretor-executivo do Instituto Vladimir Herzog (IVH).
Segundo Sottili, nesses quase 50 anos após a Lei da Anistia, muita gente trabalhou pela responsabilização dos crimes da ditadura. “Mas nunca se avançou tanto como em 2025. Nunca houve um ambiente tão favorável para a revisão da Lei de Anistia.”
“Pela primeira vez na história do Brasil há generais presos por envolvimento em tramas de desestabilização da democracia brasileira, inclusive por meio do assassinato do presidente, do vice-presidente e de um ministro do STF”, aponta o diretor-executivo do IVH.
Para a procuradora Eugênia Gonzaga, procuradora da República e presidente da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, o 8 de Janeiro pode estar para o Brasil assim como a guerra das Malvinas está para a Argentina, ou seja, pode desmoralizar as Forças Armadas de modo a tornar possível um processo de justiça de transição.
Mas ela alerta que, sem a reinterpretação da Lei da Anistia proposta pela ADPF 320, o país corre o risco de retrocesso. “Se a lei só não se aplicar aos chamados crimes permanentes, como argumentou o ministro Flávio Dino, todos os outros crimes cometidos durante a ditadura permaneceriam anistiados”, explica.
Um exemplo, diz, é o próprio caso de Rubens Paiva. “O processo em que ele é vítima envolve três crimes: fraude processual, formação de quadrilha e ocultação de cadáver. Se fizerem este recorte, só haverá punição para a ocultação de cadáver, que tem a menor pena dos três crimes”, observa.
“Hoje em dia, não estamos preocupados com a pena porque a impunidade já aconteceu. Mas reconhecer todos os tipos de crimes cometidos por agentes públicos durante a ditadura é uma decisão pedagógica.”