
Na capital da COP30, o açaí está na base da alimentação, mas produto ficou mais caro e difícil de encontrar, o que tem levado famílias a buscar alternativas e produtores a temer por seu futuro. Pela primeira vez, Paulo Tenório não tem mais açaí para vender em Belém, a ‘capital do açaí’
Cícero Pedrosa Neto/BBC
O governador do Pará, Hélder Barbalho, espera tomar uma tigela de açaí com Donald Trump, caso o presidente dos Estados Unidos compareça à Conferência do Clima das Nações Unidas em Belém, COP30, em novembro próximo.
“A pessoa não pode viver só de fast food, não é?”, disse Barbalho em um post-convite no Instagram.
Mas, se dentro dos muros do Parque da Cidade, onde ocorrerão os principais eventos da COP, os cardápios devem se encher do roxo da fruta amazônica, do lado de fora, os moradores de Belém têm penado para manter o açaí na dieta.
Em uma cidade onde o açaí é a base da alimentação — basicamente um “arroz com feijão”, servido com carnes e peixes —, o encarecimento do produto tem impacto no dia a dia de consumidores e milhares de trabalhadores envolvidos na cadeia produtiva.
Só nos quatro primeiros meses do ano, o preço do açaí tipo grosso, o mais apreciado, vendido ao consumidor em Belém aumentou 56%, segundo levantamento do Dieese-Pará: começou o ano em R$ 35,67 por litro e, no último mês, era vendido a R$ 52,10.
Um aumento nos primeiros meses do ano é esperado devido ao período de entressafra, na época mais chuvosa na Amazônia, que normalmente vai até maio. Mas não desse jeito.
Na comparação de abril deste ano com o mesmo mês do ano passado, a alta é de 7,1%. Ao olhar para 2023, a alta para o mesmo o período já é de 27,6%.
“Nunca tinha visto chegar a esse patamar de preços”, diz Paulo Tenório, de 50 anos, há 12 um batedor artesanal de açaí — profissão de quem compra o fruto nas feiras às margens da baía do Guajará, em Belém, e extrai a polpa em pequenos comércios para vender à população.
Pela primeira vez, o batedor precisou fechar temporariamente seu negócio na Marambaia, bairro periférico ao lado das instalações da COP, e passou a trabalhar como motorista de aplicativo, por até 14 horas por dia.
“Estou em abstinência de açaí”, lamenta Tenório, que, além de não vender, está sem comprar. Ele diz que sua renda diminuiu 40% em relação a anos anteriores, quando o comércio funcionava sem parar. Com pouco dinheiro, precisou mandar o filho de 18 anos para morar com a avó.
Segundo pesquisadores e pessoas envolvidas na cadeia produtiva do açaí, a entressafra, porém, não explica todo o problema.
As mudanças aceleradas do clima, ainda somadas ao fenômeno do El Niño, têm alterado as condições necessárias para que o açaizeiro, uma espécie nativa de áreas de várzea, frutifique.
No ano passado, a estiagem prolongada que secou rios no Norte do Brasil encurtou a safra e fez os frutos encolherem.
“As secas acertaram diretamente a cadeia produtiva do açaí”, diz Nathiel Moraes, diretor de pesquisas do Instituto Açaí é Nosso e pesquisador do Grupo de Trabalho do Açaí da Universidade Federal do Pará (UFPA).
“O açaizeiro precisa de um equilíbrio tão preciso da natureza que o ser humano é um mero coadjuvante”
A equação é complexa para os pequenos produtores: a árvore precisa de um período semelhante entre chuvas e sol no início da safra, um período mais seco para a colheita e um período de chuva intensa para voltar a se fortalecer antes de produzir de novo.
A alta do preço do açaí também tem ocorrido justamente em um momento em que o mundo descobre o sabor dessa fruta, um alimento saudável e energético agora apreciado desde as praias da Califórnia aos shoppings de Dubai, passando por todas as regiões do Brasil.
Para atender a essa demanda, a árvore de açaí passou a ser cultivada em grande escala nos últimos anos, em alguns casos em monocultura, levando a temores de perda de biodiversidade na Amazônia. A produção tem batido recorde no Pará, Estado que concentra 90% da produção nacional.
Os números de exportação do Pará sobre os derivados de açaí saíram de 1 tonelada em 1999 para mais de 61 mil toneladas em 2023, segundo a Fundação Amazônia de Amparo a Estudos e Pesquisas (Fapespa).
Mas, além dessas grandes plantações exclusivas às indústrias, o apetite pela fruta também faz com que alguns pequenos produtores, que antes abasteciam o mercado local, passassem a vender a fábricas que mandam o produto para fora do Pará, segundo pesquisadores, contribuindo para a crise em Belém.
Açaí fino e a chula
Nessa época do ano, com a entressafra e uma crise multifatorial, o açaí que tem chegado a Belém é de menor qualidade e “mais fino”. Ou seja, além de mais caro, gera um creme mais ralo, segundo os batedores.
Mas, com o preço nas alturas, mesmo quem continua comprando tem mudado o comportamento.
Os belenenses têm pedido com frequência nos comércios de batedores de açaí a água residual que sobra no processo, na lavagem do caroço — chamada de churamba ou chula.
“A pessoa pede, em vez de 1 litro de açaí, meio litro mais o resto de água”, conta Paulo Tenório, batedor artesanal. A mistura deixa o alimento mais fino e menos nutritivo e saboroso.
Na época da safra, os frutos que chegam a Belém normalmente vêm das ilhas e regiões próximas da cidade. Nesse período de escassez, precisam vir de mais longe, em barcos com gelo desde a Ilha do Marajó, em uma viagem de sete dias.
Quando chega à capital, gelado, a qualidade não é a mesma e pode estar azedo, explica Tenório: “O açaí é um defunto, quando sai do cacho, começa a morrer”.
Ao contrário do resto do Brasil (e do mundo), que consome o açaí quase como sorvete, misturado a xaropes como o de guaraná, o paraense preza mais pelo açaí fresco. Quanto menos tempo levar da árvore à mesa, melhor. Por isso, o produto das grandes fábricas não é tão interessante aos moradores locais.
“Para vocês fora da Amazônia, açaí não é cultura alimentar, é uma sobremesa, um pré-treino. Aqui, tem família que está todo dia comprando açaí para poder se manter, é o almoço”, conta Moraes.
No início dessa cadeia local, estão as pequenas comunidades que plantam o açaí nos arredores de Belém.
Uma delas é a comunidade quilombola Itacoã Miri, em Acará. Até os anos 1990, os moradores sobreviviam com a produção de farinha. Mas um projeto de incentivo à colheita de açaí mudou a economia local.
“Éramos miseráveis, passava fome mesmo. Com o açaí, a comunidade alavancou, melhorou muito nossa vida”, relata o agricultor Marcos da Silva, de 48 anos
Na época da safra, a cada dois dias Silva sai da comunidade e passa uma hora e meia em um barco até o Porto da Palha, em Belém, onde vende a produção. Com um período de entressafra maior devido ao clima, os barcos ficam parados por mais tempo, saindo eventualmente para venda de outras frutas, como cupuaçu e pupunha.
“Isso não é normal. Tem algum fator que está causando isso, porque que está tendo mudança, isso está”, diz Silva, que teme pelo futuro.
Chover na hora certa
Nativa de áreas de várzea, inundadas periodicamente pelos rios, a palmeira do açaí precisa de muita água.
A forte estiagem que atingiu o Norte do Brasil em 2024 e em 2023 fez o fruto secar. Na época de safra, algumas árvores estavam mortas.
“Tem frutos que acabam nem nascendo ou secam no pé. Quando saem, demoram muito e estão pequenos”, diz o pesquisador Nathiel Moraes, que tem trabalhando para desenvolver tecnologias para o açaí, como um biogel que faça o fruto ter mais durabilidade.
O cenário de seca fez com que a última safra começasse apenas em agosto —normalmente, vem em junho.
Na comunidade do Itacoã Miri, em Acará, Marcos da Silva relata que normalmente consegue colher de junho até janeiro, mas, no último ano, as árvores já não tinham mais frutos em novembro. Ou seja, teve uma safra curta e uma entressafra muito grande.
Apesar dos recordes de produção de açaí no Pará, Silva explica que a realidade dos pequenos produtores é diferente.
Suas pequenas plantações geralmente não possuem sistema de irrigação que consigam abastecer de água em épocas secas.
“Pode até aumentar a área de plantação, mas as nossas árvores estão dando menos açaí, os cachos estão menores”, diz Silva. Nas suas contas, em 15 anos, a produtividade na sua comunidade quilombola caiu 40%.
A falta de acesso a recursos para financiamento e implementação de novas tecnologias são uma reclamação constante entre quem acompanha a cadeia produtiva de açaí de Belém.
“Precisamos trazer inovações para diminuir os impactos que as mudanças climáticas vão causar nessa cadeia produtiva daqui. Não adianta só plantar mais açaí e aumentar a exportação”, relata Moraes.
Mesmo que a falta de chuva seja um problema, os produtores também temem que chova demais.
Como há pouca tecnologia aplicada à colheita, a retirada dos cachos ainda é feita exclusivamente pelos peconheiros, que sobem nas árvores com a ajuda de uma peconha, um tipo de cinta usada nos pés para se apoiar na escalada.
Quando chove, eles não têm como coletar o fruto, porque a segurança fica muito comprometida com a palmeira lisa demais, e o fruto passa do tempo de amadurecimento e começa a apodrecer.
A cadeia de produção de açaí também é frequentemente alvo de denúncias de trabalho infantil, já que crianças, mais leves, são usadas para subir nas árvores. Há relatos de fraturas, ferimentos e picadas de animais.
A BBC News Brasil questionou o governo do Pará a respeito de projetos para modernizar a cadeia produtiva do açaí no Estado. Em nota, a gestão Barbalho disse que tem em andamento o projeto PRÓ-AÇAÍ, para capacitar produtores e incentivar o cultivo irrigado.
“Como o açaizeiro é uma cultura perene, os resultados dessas ações são estruturantes e de médio a longo prazo”, afirmou o governo paraense em nota.
Sucesso global e a polêmica do açaí congelado
As fábricas que produzem o açaí para fora do Pará, em geral, só funcionam durante o período de safra. Muitas têm plantações próprias.
Mas outras, segundo os relatos ouvidos pela BBC News Brasil, vão atrás dos frutos que antes abasteceriam Belém.
Em alguns casos, produtores são procurados muito antes da colheita, recebendo um valor menor do que o normal como uma antecipação, garantindo que toda a produção vai para a indústria.
“Quando você está consumindo açaí absurdamente durante aquele período da safra, você está tirando de quem consome aqui dentro”, diz Moraes.
Como as fábricas congelam o produto, que vai ter um prazo longo de validade, elas trabalham a todo vapor quando está na época da colheita. No resto do ano, costumam vender o que já foi embalado.
Em geral, essa estratégia de congelar o açaí não era bem aceita em Belém. Mas isso tem mudado.
Nos últimos dez anos, diz o batedor Paulo Tenório, a população que só buscava o açaí fresco passou a aceitar o refrigerado, que é batido de um dia para o outro e mantido na geladeira, sem congelar.
Agora, redes de supermercado da cidade já oferecem a polpa congelada. “As pessoas querem açaí, não importa mais se congelado ou não”, diz Moraes.
Diante do novo cenário, os batedores de açaí também querem congelar o produto. Hoje, eles são impedidos por regras sanitárias.
Polpa de fruta só pode ser comercializada no Brasil se for pasteurizada — processo de aquecimento controlado seguido de resfriamento rápido, usado para eliminar micro-organismos
Um decreto estadual do Pará permite que os trabalhadores artesanais do açaí vendam o produto desde que realizem o branqueamento, processo em que o açaí, após ser higienizado, é imerso por 15 segundos em água a 80ºC e, em seguida, resfriado à temperatura ambiente.
O objetivo é controlar micro-organismos como a salmonela e o protozoário causador da doença de Chagas. Esse processo, porém, não é suficiente para uma autorização que permita o congelamento, e a pasteurização é um processo mais complexo e muito caro para os batedores.
A Assembleia Legislativa do Pará (Alepa) aprovou uma lei em abril que possibilita aos batedores congelar o açaí. A ideia do deputado Bordalo (PT) seria criar um “estoque regulador” no período de entressafra para o preço não disparar.
Mas a legislação foi vetada pelo governador Helder barbalho (MDB).
Segundo a Procuradoria-Geral do Estado, o veto foi embasado em pareceres técnicos que apontaram inconstitucionalidade, por tratar de matéria de competência da União, além da falta de critérios sanitários e de parâmetros técnicos para o congelamento seguro do açaí.
Em nota, o governo do Pará diz que “está aberto ao diálogo com os batedores e parlamentares para construir soluções que sejam viáveis, sustentáveis e juridicamente seguras”.
Os batedores e deputados por trás da proposta argumentam que o projeto não entra na seara federal, já que a Constituição garante aos Estados competência para legislar sobre produção, consumo e proteção à saúde.
Segundo associações que defendem os produtores, eventuais falhas técnicas apontadas pelo governo poderiam ser resolvidas em legislação complementar.
A Assembleia Legislativa do Pará, com maioria favorável ao governador, decidirá se derruba o veto. Até lá, os batedores seguirão sem poder congelar.
“Nosso medo é que grandes fábricas que exportam passem a vender o açaí congelado aqui no nosso mercado interno, e a gente perca nosso trabalho”, diz Paulo Tenório.