De porta em porta: o Jornal Nacional e a construção de proximidade e espaço público

(Foto: Reprodução de vídeo do JN – 22/04/2025)

Em abril de 2025, a TV Globo completou 60 anos de história. Mais do que apenas uma marca empresarial, a emissora consolidou-se como uma das principais construtoras do imaginário nacional, especialmente por meio do telejornalismo. Um dos marcos dessa trajetória é o Jornal Nacional, criado em 1969, que se tornou símbolo de unificação simbólica do país e referência de jornalismo profissional para milhões de brasileiros.

Para comemorar a data, a emissora executou uma iniciativa incomum, com o telejornal sendo ancorado, durante uma semana, diretamente da casa de telespectadores em diferentes regiões do Brasil, associada à exibição da série “JN em família”. Conduzidas pela apresentadora Renata Vasconcellos, essas edições estabeleceram uma nova forma de interação entre o telejornal e sua audiência. Embora não seja a primeira vez que o noticiário sai do estúdio (o projeto Caravana JN, em 2006, e o projeto JN no Ar, entre 2010 e 2012, viajaram pelo país com reportagens de campo ancoradas por repórteres), a proposta atual se diferencia pelo grau de proximidade simbólica e afetiva com o cotidiano dos telespectadores.

Ritual de pertencimento

A presença da apresentadora na casa das famílias brasileiras carrega um gesto simbólico importante. O telejornal deixa de ser apenas uma transmissão e se transforma em uma visita. Ao sentar-se no sofá com os moradores, compartilhar conversas e dividir a apresentação do noticiário, em tempo real, com William Bonner no estúdio do Rio de Janeiro, Renata Vasconcellos contribui para fortalecer a ideia da televisão como ritual de pertencimento.

Depoimentos como “eu dou boa noite pra vocês” ou “vejo vocês todos os dias” revelam um elo afetivo que atravessa gerações. Em tempos de dispersão da audiência e de consumo fragmentado de notícias nas plataformas digitais, esse gesto reforça a dimensão coletiva da televisão; uma mídia que, apesar de enfrentar desafios de renovação tecnológica, ainda oferece um tipo de experiência compartilhada difícil de ser replicada no digital.

Esse vínculo é reforçado desde a chegada da apresentadora na casa das famílias, quando ao cumprimentar e presentear com algo singelo, projeta valores como acolhimento, gratidão e simplicidade. São características que contribuem para a humanização da atuação jornalística.

Cada residência visitada também oferece uma mise-en-scène visual que amplia a narrativa. Sofás, cadeiras de plástico, plantas, móveis e outros elementos pessoais ao fundo contribuem para um retrato estético plural e cotidiano. A presença do telejornal nesse cenário comunica não apenas uma intenção de aproximação, mas também de legitimação de outras formas de habitar o país, reconhecendo esteticamente realidades que raramente ocupam o centro da narrativa televisiva.

Além da presença física nas casas, a iniciativa é complementada com a série “JN em família”, que resgata histórias e personagens que marcaram edições passadas do noticiário, reforçando o papel do telejornal como testemunha da vida social brasileira. A ação mobiliza a memória coletiva e enfatiza o compromisso de continuidade do noticiário com as trajetórias que ele próprio ajudou a visibilizar em outros momentos.

Mediação simbólica

Embora o deslocamento de repórteres até os locais dos fatos seja uma prática tradicional do jornalismo, a proposta comemorativa do Jornal Nacional introduz um elemento simbólico novo: o encontro com a audiência deixa de ser mediado apenas pela notícia e passa a incluir o cotidiano, o lar, a convivência. Não se trata apenas de cobrir acontecimentos, mas de marcar presença onde as notícias são recebidas. É o ato de estar junto, não apenas informar.

Ao experimentar um novo vínculo com o telespectador, ainda que de forma planejada, a televisão reafirma a importância de um jornalismo atento às pessoas, às histórias e às formas diversas de habitar o país. Nesse contexto, a comunicação se torna mais relacional, onde o público é acolhido não apenas como destinatário da informação, mas como sujeito essencial da narrativa jornalística. Isso confere ao projeto um caráter mais humano, em contraste com a lógica impessoal que tantas vezes caracteriza a cobertura factual convencional.

Ao assumir um tom de conversa, mais do que de anúncio de fatos, essas edições investem numa escuta ativa que desloca o foco do jornalista para o cidadão comum. O que se evidencia, portanto, é a centralidade da escuta, que se sustenta na afetividade como mediadora da confiança e não na “autoridade” profissional.

Valor público do jornalismo que escuta

Em um tempo em que tanta coisa parece ruir, como a confiança nas instituições e os próprios formatos de consumo de informação, o Jornal Nacional decidiu bater à porta. Literalmente. Assim, em meio à avalanche de desinformação e à hiperexposição nas redes sociais, a iniciativa apostou no básico: estar presente. É uma forma de mostrar que o jornalismo, mais do que nunca, precisa ser humano. Precisa ver e ser visto. Falar e ouvir.

A credibilidade da televisão no Brasil sempre esteve associada à capacidade de criar familiaridade com o telespectador. Uma familiaridade que se constrói tanto pela linguagem quanto pelos rituais cotidianos. A televisão, nesse sentido, ainda funciona como mediadora da experiência pública, mesmo em um tempo de conectividade e fragmentação digital. O sociólogo francês Dominique Wolton já dizia que a televisão é um dos poucos meios capazes de criar um laço social comum: todos podem não pensar igual, mas compartilham da mesma pauta, do mesmo horário, da mesma imagem. É isso que constrói pertencimento. E o Jornal Nacional, ao entrar nas casas das pessoas, reafirma esse papel de mediador.

Esse sentido de “lugar de referência” é também o que o pesquisador brasileiro Alfredo Vizeu defende ao falar do telejornalismo como espaço simbólico. Para Vizeu, os telejornais ajudam a organizar o mundo, a dar sentido ao cotidiano e são pedagógicos ao ensinar a ver, interpretar e reagir ao que acontece.

Ao levar o noticiário para diferentes regiões, a Globo constrói uma cartografia simbólica de afetos e identidades. Cada edição especial do telejornal e das reportagens é uma aula pública sobre como o jornalismo pode se aproximar, sem perder a seriedade. Pode emocionar, sem deixar de informar. Pode abraçar, mesmo com a sobriedade do espaço televisivo.

Um convite à desaceleração

É comum associar o digital à inovação e a televisão ao passado. Mas a televisão brasileira tem demonstrado resiliência, experimentado estratégias multiplataforma e desenvolvido narrativas que dialogam com os novos hábitos de consumo.

A iniciativa alusiva aos 60 anos da Globo, nesse contexto, não apenas celebra o passado da emissora, mas projeta um telejornalismo possível para o futuro. Em contraponto ao fetiche da velocidade e da efemeridade do ambiente digital, o gesto de estar na casa das pessoas, escutando, olhando nos olhos e conversando, funciona como uma ruptura no fluxo rotineiro de notícias.

É um convite à desaceleração. Ao alterar o cenário habitual do telejornal e incorporar o ambiente doméstico ao enquadramento jornalístico, o Jornal Nacional propõe um outro ritmo, mais atento, mais próximo, mais humano. A televisão, aqui, não quer apenas informar com rapidez, mas marcar presença. Ao fazer isso, chama a atenção para si mesma, como quem bate à porta do público para dizer: “estamos aqui, com você!”.

Ao revisitar histórias passadas e reconhecer a repercussão social de reportagens antigas, o projeto reforça o pacto de confiança que o telejornalismo busca manter com sua audiência. Não se trata de reafirmar sua autoridade, mas de demonstrar que a credibilidade se constrói em ciclos contínuos de escuta, presença e prestação de contas.

Por fim, essa ação especial do Jornal Nacional suscita uma expectativa: o que será feito dessa experiência? O gesto simbólico da escuta, da presença e da afetividade poderia, mesmo que em diferentes proporções, se traduzir em práticas mais frequentes no cotidiano do telejornalismo brasileiro? A depender da continuidade/adaptação ou não dessas estratégias, a ação pode ser lembrada como uma mudança na forma de como o jornalismo televisivo escuta e se conecta, ou apenas como celebração episódica de um legado em disputa.

Como observa Toby Miller, pesquisador britânico/australiano, a televisão não desaparece; ela se transforma para continuar presente. E o telejornalismo, ao assumir novas formas de presença, continua sendo um dos principais mediadores da vida pública brasileira. O telejornalismo comprometido com o público é bem-vindo. E quando bate à porta, o público abre e agradece.

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Vitor Belém é jornalista, doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP e professor da Universidade Federal de Sergipe. Foi repórter e produtor de TV e atua como pesquisador na área de jornalismo audiovisual. Atualmente é Diretor Científico da Associação Brasileira de Pesquisadores em Jornalismo (SBPJor) e lidera o grupo de pesquisa Jornau.

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