
Fachada do INSS. Setor de autarquia sul (Foto: Rafa Neddermeyer/Agência Brasil)
No final de 2012, levantei-me da minha cadeira na redação do jornal, atravessei uma avenida e entrei em uma agência do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), em Porto Alegre (RS), para entregar a papelada e iniciar o processo da minha aposentadoria. Em janeiro do ano seguinte, estava envolvido em uma reportagem investigativa na fronteira do Paraná com o Paraguai quando recebi uma ligação no celular. Percebi, pelo tom da voz, que se tratava de uma jovem. Ela informou que a minha aposentadoria tinha sido concedida e que eu deveria me associar a uma entidade que representaria os meus interesses. Pensei que ela fosse do INSS e me identifiquei, dizendo que era repórter. Em seguida, perguntei se era obrigatório ser sócio da tal associação. Respondeu que não era funcionária do INSS e desligou. Fiquei preocupado. Se não era servidora do governo federal, como as minhas informações foram parar nas suas mãos? Vim a saber mais tarde que era comum as pessoas receberem este tipo de ligação. Dois meses depois, o INSS informou que eu estava aposentado e esqueci da ligação.
Só fui me lembrar dela de novo no final do último mês de abril, quando a Operação Sem Desconto, da Polícia Federal (PF), e uma auditoria da Controladoria-Geral da União (CGU) revelaram o escândalo do roubo nos proventos de aposentados e beneficiários do INSS. Sem autorização dos donos das contas, organizações criminosas fizeram descontos ilegais para associações e sindicatos. Estima-se que de 2019 a 2024 tenham sido roubados R$ 6,3 bilhões de 4,1 milhões de aposentados e beneficiários. Por conta do escândalo caiu o presidente do INSS, Alessandro Antonio Stefanutto, substituído pelo procurador federal Gilberto Waller Júnior, que é pós-graduado em combate à corrupção e lavagem de dinheiro. Também perdeu o cargo o ministro da Previdência Social, Carlos Lupi, 68 anos, entrando em seu lugar o então secretário-executivo do ministério, Wolney Queiroz, 52 anos. Os noticiários estão inundando os leitores diariamente com centenas de matérias a respeito do escândalo. A maioria das reportagens traz informações de boa qualidade, que têm como objetivo esclarecer dois pontos. O primeiro é o tamanho do roubo e quem são os responsáveis pelo crime, que até agora somam mais de uma dezena de pessoas. A PF tem apontado como principal envolvido o lobista Antônio Carlos Camilo Antunes, 61 anos, o Careca do INSS. Ele não é funcionário federal. É suspeito de, em menos de uma década, ter construído uma estrutura criminosa dentro do Ministério da Previdência que lhe rendeu uma respeitável fortuna. Também está sendo investigado se a sua organização criminosa tem ligações com o golpe do crédito subsidiado, que consiste em usar as informações pessoais das vítimas para fazer empréstimos bancários. Em nota à imprensa, os advogados do lobista, Alberto Moreira e Flávio Schegerin, disseram que não comentam processos em curso, principalmente os que tramitam em segredo de justiça. E que a inocência de Antônio Carlos será devidamente comprovada.
O segundo objetivo das reportagens que estão sendo publicadas é explicar os danos que o golpe causou à imagem do governo do presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), 79 anos. E as providências que estão sendo tomadas para resolver o problema, entre elas devolver para as vítimas o dinheiro que foi roubado. Dito isso, qual é a minha proposta para os meus colegas repórteres? Em primeiro lugar, essa história vem sendo contada pelas informações cavadas nas investigações feitas pela PF e pela CGU, que são ancoradas em dados técnicos. A história que não está sendo contada na imprensa é como essas organizações criminosas conseguiram construir dentro do INSS uma teia de contatos pessoais. É justamente aqui que entra a investigação jornalística, que, diferentemente da policial, não tem acesso a informações confidenciais encontradas nas quebras de sigilo telefônico, bancário e outras fontes de dados. A investigação jornalística consiste em sair por aí reunindo as informações oficiais do caso e batendo de porta em porta em busca de pessoas que conhecem os envolvidos e têm fatos inéditos para contar. Já fiz isso várias vezes. É difícil e demorado. Mas compensa. Antônio Carlos, o Careca do INSS, e os outros suspeitos de terem montado organizações criminosas para pegar dinheiro de aposentados e beneficiários deixaram rastros no Ministério da Previdência Social. Um desses rastros pode ser um funcionário que sabia o que estava acontecendo ao seu redor e ficou na dele. Ele tem uma história para contar e está esperando o ouvido de um repórter para falar. Lembro que a Constituição nos garante o direito de não revelar as nossas fontes. Sempre tem alguém que sabe de alguma coisa, ainda mais em uma estrutura do tamanho do INSS, que atende a 31,5 milhões de pessoas, sendo 21,8 milhões de aposentados, 8,2 milhões de pensionistas e 1,5 milhão de beneficiários do auxílio-doença.
Lembram do episódio que contei no início da nossa conversa, que aconteceu em 2013, quando recebi a ligação de uma jovem avisando que o meu processo de aposentadoria tinha sido aceito e fazendo uma proposta para ser sócio de uma entidade? Já naquele tempo existia vazamento de informações. Mas o esquema da ilegalidade era amador. De 2019 até os dias atuais, o assalto aos proventos dos aposentados e beneficiários foi profissionalizado e cresceu enormemente. Para reforçar a minha análise sobre a profissionalização do ataque às contas do INSS eu cito o fato de que a maioria (67%) dos 4,1 milhões que tiveram descontos ilegais em seus benefícios e aposentadorias reside no interior do Brasil, em locais com problemas de comunicação, e 33% em cidades, dando preferência para pessoas que não usam a internet. Este esquema exige uma pesquisa prévia. Ou seja, não é coisa de amador. Mais ainda: a PF descobriu que um agente seu, Philipe Roters, está envolvido no esquema criminoso. Foram encontrados 200 mil dólares na sua casa. Por tudo que relatei, eu pergunto o seguinte: Antônio Carlos, o Careca do INSS, é o “caixa-preta” desta história? O fato dele ter sido apontado como principal envolvido não significa que concentra todo o caso. Uma explicação que julgo necessária. “Caixa-preta” é uma gíria que nas redações identificava uma pessoa que conhecia todos os bastidores de um caso e era muito usada pelos repórteres que faziam a cobertura dos assuntos policiais. Há uma ponta deste escândalo que precisa ser esclarecida. Consta que o Careca do INSS fez uma doação de R$ 1 para a campanha do ex-presidente da República Jair Bolsonaro (PL), 70 anos, quando ele concorreu à reeleição. Por que fez a doação?
Publicado originalmente em Histórias Mal Contadas.
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Carlos Wagner é repórter, graduado em Comunicação Social — habilitação em Jornalismo, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul — Ufrgs. Trabalhou como repórter investigativo no jornal Zero Hora (RS, Brasil) de 1983 a 2014. Recebeu 38 prêmios de Jornalismo, entre eles, sete Prêmios Esso regionais. Tem 17 livros publicados, como “País Bandido”. Aos 67 anos, foi homenageado no 12º encontro da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (ABRAJI), em 2017, SP.
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