ANA BOTTALLO
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS)
Algumas das alterações cerebrais que ocorrem em dependentes de drogas ou de jogos de azar e de redes sociais são bem conhecidas. O que muitos ainda não compreendem é que elas não são exatamente a causa do vício, e sim um sintoma da adição, associada a traumas profundos, segundo Gabor Maté, médico húngaro radicado no Canadá e autor de diversos livros sobre neurociência do vício.
“A pergunta não é o que a dependência faz ao cérebro, mas o que houve durante a vida daquela pessoa que tornou o cérebro suscetível à dependência, e eu te digo que é o trauma severo, o sofrimento humano. Todos os meus pacientes dizem, categoricamente, que usam substâncias químicas para afastar a dor, o sofrimento”, diz Maté.
O médico defende que essa compreensão dos mecanismos biológicos envolvidos com o vício podem ajudar no tratamento de dependentes químicos e usuários de drogas em situações de vulnerabilidade, trabalho que ele realiza há mais de 20 anos em um centro para acolhimento de dependentes químicos em Vancouver, na província de Columbia Britânica, costa oeste do Canadá.
“O cérebro se vicia porque existem certos circuitos que estão envolvidos na dependência, como neurotransmissores opioides, que estão lá para nos dar alívio da dor e dar prazer. Agora, ao obter esses opioides de fora, uma pessoa se torna dependente porque o cérebro dela já está alterado pela própria experiência de vida.”
Vancouver criou, em 2003, abrigos e centros considerados seguros para o uso de substâncias químicas, onde equipes médicas supervisionam usuários de drogas. Um dos primeiros centros foi o Downtown Eastside, onde Maté atuou como médico.
Em seu livro “Vício: o Reino dos Fantasmas Famintos”, recém-publicado no Brasil pela editora Sextante, ele conta sobre várias das experiências particulares desses usuários na tentativa de ajudá-los a superar seus traumas pessoais e curá-los da adição.
O autor lembra que a dependência se manifesta em qualquer comportamento em busca de um prazer temporário ou alívio momentâneo da dor, mesmo que traga consequências negativas, como é hoje debatido o vício em jogos de apostas online ou de telas.
“Uma pessoa que joga em um cassino, ou jogos de azar, não é viciada em dinheiro, pois, se ela ganhar uma aposta na noite anterior, no dia seguinte vai apostar tudo e perder o dinheiro. Então pode ser qualquer comportamento, drogas, cafeína, álcool, morfina, cocaína, pornografia, compras, a lista vai longe.”
Mas ele não limita as alterações cerebrais aos dependentes químicos.
Os estudos por trás do vício evoluíram nas últimas quatro décadas, e hoje existe um vasto conhecimento científico sobre os diversos tipos de comportamentos com alto potencial aditivo, inclusive aqueles relacionados ao uso de telas em crianças menores de quatro anos, por exemplo.
“Nós precisamos constantemente de recompensas para estimular o cérebro e produzir hormônios que nos fazem sentir bem e, quando não conseguimos por interações sociais, amor, ou outras formas, buscamos através de outros mecanismos, como abuso de telas, drogas, vício em compras. Sempre tem uma base para suprir aquela falta.”
É claro que o mal causado e os potenciais problemas de saúde gerados por diferentes tipos de vícios não são os mesmos, reforça o médico, sendo o uso de drogas pesadas e até mesmo de opioides, como no caso dos Estados Unidos, muito grave. Mas a compreensão de que tais comportamentos são, na verdade, relacionados a alterações nas composições químicas cerebrais pode ajudar na busca de novas vias de tratamento.
O médico é também um defensor do uso de substâncias psicodélicas para o tratamento do vício, e vem estudando isso como forma de terapia para traumas vividos e que tem efeitos também sobre o vício.
“Temos plantas conhecidas na África, na América Central e na Amazônia [como a ayahuasca] que têm efeitos terapêuticos conhecidos sobre a cura do trauma. Também trabalhei com a raiz de iboga, uma planta nativa do Gabão, que reduz os sintomas de abstinência e recaída em dependentes de heroína. São coisas muito úteis e promissoras, mas infelizmente a medicina ocidental é muito refratária a essas terapias.”
Segundo ele, as intervenções médicas –como internações e tratamentos com drogas sintéticas que reduzem os sintomas aditivos– são limitadas, e também há uma ignorância por parte da classe médica de que o vício é uma questão inerente do indivíduo e pode ser genético.
“Não estou dizendo que não tem um fator, mas ele não é só genético. Começa com sofrimento, e há muita ignorância nesse sentido. Se os médicos e os profissionais de saúde olhassem para a ciência, para os estudos de como o cérebro se desenvolve, a medicina poderia mudar, a política social contra as drogas poderia mudar.”