Por: Ricardo Vianna Hoffmann
“Amor mundi”, um grande “sim” à vida e à ação.
— Hannah Arendt*
Hannah dormia encolhida sobre um pedaço de papelão, seu único refúgio contra o frio da noite. Em seus sonhos, encontrava um abrigo mais acolhedor, onde ainda existiam um lar e uma família que, na realidade, já não faziam parte de sua vida.
Nos braços do mitológico Morfeu, ela dançava ao som de uma melodia silenciosa, como se pudesse preencher o vazio que a vida nas ruas lhe impunha. Em suas fantasias, encontrava proteção e se permitia descansar, tentando fugir da dura e desumana realidade que, dia após dia, a dominava sem piedade.
Não carregava bagagens — nem físicas, nem emocionais, perdidas nos seus caminhos. “Sou uma boêmia”, dizia, com um sorriso que misturava orgulho, indignação e conformismo. “Não tenho raízes em nada que possa chamar de meu, e por isso levo meu ambiente comigo, para onde quer que eu vá.”* Suas palavras ecoavam uma liberdade que, para muitos, parecia mais uma desordem do que uma escolha.
Certa noite, foi despertada pelo prefeito, que a abordou com uma expressão que tentava equilibrar ideologia política — para agradar seus eleitores —, autoridade e pena.
— Você precisa sair da rua — disse ele, como se, para Hannah, a rua fosse um lugar de passagem, e não um lar.
Ela o encarou, sem ódio, mas com uma tristeza profunda. Seu pensamento foi sem desvio: O prefeito quer que eu saia? E, então, respondeu:
— Eu não tenho nenhum lugar — murmurou, devagar, quase inaudível. — Meu único lugar é aqui, na rua.
Naquele instante, foi doloroso para ela encarar mais uma verdade imposta: nem mesmo na rua havia lugar para ela.
Para alguns daqueles cidadãos que assistiam a cena, era impossível não refletir sobre quantos, como Hannah, vivem à margem, invisíveis para alguns, incômodos para outros. Pessoas que, por circunstâncias da vida ou por escolhas difíceis, não têm um teto, mas carregam consigo histórias, sonhos e uma humanidade que muitas vezes esquecemos de enxergar. Ela não queria laços, mas talvez precisasse de um solo, de um metro quadrado onde pudesse, ao menos por um instante, permanecer, descansar, pernoitar, dormir, esquecer.
Enquanto se levantava, ouviu:
— A rua não é o teu lugar!
Seguiu seu caminho, deixando no ar uma pergunta silenciosa para os poucos transeuntes que pararam ao ver o prefeito: Quantos de nós realmente paramos para ver, ouvir e sentir as histórias daqueles que chamamos de “sem-teto”? Quantos de nós reconhecemos que, em algum nível, todos carregamos nossas próprias ruas dentro de nós?
Leitor, Parece estar cada vez mais difícil promover, defender, implementar e não abandonar os direitos humanos, pois o mundo, teimosamente, insiste em negá-los. Reflita sobre a dualidade da personagem: sua liberdade e fragilidade, sua invisibilidade e solidão. Convido você a pensar sobre as histórias que, tantas vezes, passam despercebidas.
Pense nisso!
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