O desafio civilizacional de conter o unilateralismo e reinventar o multilateralismo

(Foto: Kaboompics.com/Pexels.com)

Duas matérias publicadas na mídia durante o feriado de Páscoa, uma sobre os tecnocratas de Trump que querem destruir o liberalismo e outra sobre a ideologia por trás de Xi Jinping, evidenciam uma inflexão decisiva na ordem mundial, com acirradas disputas nos campos comercial e geopolítico.

Donald Trump, com o apoio de setores conservadores, preocupados com a manutenção do status do país enquanto potência máxima, encampa e promove políticas unilaterais nacionalistas e protecionistas como forma de reagir ao processo de desindustrialização que ocorre há décadas no território estadunidense.

Enquanto isso, a China continua a expandir sua influência global por meio da Nova Rota da Seda e da agressiva política de investimentos tecnológicos, potencializando ainda mais as tensões internacionais, a Guerra Fria 2.0, ou seja, tensões geopolíticas entre grandes potências globais, especialmente entre os Estados Unidos e a China. A disputa da Guerra Fria 2.0 é pela influência mundial – a China, com sua iniciativa da Nova Rota da Seda contra os Estados Unidos com o peso de seus 80 anos como superpotência.

Essa ruptura indica não apenas uma crise do modelo neoliberal, mas a emergência de uma nova disputa por hegemonia no sistema internacional.

Desde sua criação, em 1995, a Organização Mundial do Comércio (OMC) tem a responsabilidade de organizar e gerenciar “os alicerces do sistema multilateral do comércio” (WTO).

A prática do multilateralismo é importante sobretudo para promover a cooperação e conter a dominação, “(…) na grande maioria de suas manifestações e exemplos é muito positivo para a estabilidade da ordem e sistema internacional, ao permitir que haja um equilíbrio maior de poder entre os países ao abrir possibilidades para que estes atuem em conjunto em determinadas pautas internacionais, compensando assim a disparidade poder existente entre grandes potências e países de menor projeção” (2020).

Nos últimos anos, o sistema internacional testemunhou o fortalecimento de projetos políticos unilaterais, nacionalistas e protecionistas, que colocam em xeque as bases de uma ordem internacional fundada na cooperação e nas normas multilaterais. As ações do governo Trump são responsáveis por essa virada histórica por promover um reposicionamento agressivo diante das instituições internacionais e por reabilitar a lógica da força e da barganha nas relações entre Estados, o que acaba por fortalecer acordos bilaterais ou regionais como alternativas. Na realidade, como salienta Alfredo (2025) (…) “trata-se da reedição do unilateralismo mercantilista, na qual procura fazer os EUA obter vantagens individuais em detrimento de acordos de benefício mútuo”. Não são apenas guerras comerciais, são (…) batalhas estratégicas para restaurar a grandeza americana no sistema internacional”.

As ações unilaterais de Trump parecem ser a gota d’água do colapso do multilateralismo que emergiu após a Segunda Guerra Mundial e se consolidou com o processo de globalização. No entanto, é importante salientar que essa crise também decorre da captura das instituições multilaterais por parte do Norte Global, que as levaram a servir mais aos interesses do capital transnacional do que à justiça internacional.

Vesentin (2003) afirma que “a globalização atual fortalece a hegemonia do capital internacional e das grandes potências, submetendo os Estados periféricos a uma ordem econômica imposta”. A geopolítica da OMC é prova dessa estrutura, pois, embora todos os países-membros tenham, teoricamente, poder de voto, na prática as decisões são moldadas por coalizões informais lideradas pelas grandes potências. Um exemplo para elucidar essa questão foram as barreiras ambientais impostas pela União Europeia aos produtos do Mercosul. No entanto, quando os países do Sul Global tentam limitar as importações de produtos poluentes e de grande emissão de carbono, o veto pode ser denunciado como barreiras não-tarifárias. Dessa forma, notamos que a OMC não opera sob o princípio da igualdade entre os Estados, e também não reconhece as especificidades históricas, culturais ou ambientais das nações.

Em sua obra, Milton Santos já denunciava que o mundo atual é marcado por uma “globalização perversa”, aquela que atribui aos países e populações uma lógica que é imposta e comandada pelos interesses financeiros e tecnológicos do capital internacional. Santos (2000), salienta que (…) “o mundo atual é moldado por uma lógica do capital que aprisiona os países, os governos e as instituições internacionais. A globalização, para a maioria da humanidade, é uma fábrica de perversidades”.

A crise provocada pela atuação das instituições multilaterais, bem como da ascensão ideológica do unilateralismo que defende o fim de normas e tratados de cooperação internacionais, como Organização Mundial da Saúde ou Acordo de Paris, enfraquece e compromete a capacidade global de enfrentar desafios coletivos, como mudanças climáticas, pandemias e até mesmo do direito internacional.

Para superar essa crise será necessário ocorrer uma união de todo o campo político democrático contra a ascensão e o fortalecimento da extrema direita mundial. Segundo Hers e Summa (2025), “a ascensão ao poder de líderes autoritários de direita e a crescente influência política dos movimentos de extrema direita e supremacistas em um número cada vez maior de países representam uma ameaça existencial não apenas para a democracia em nível nacional, mas também para a governança global e o futuro do sistema multilateral”.

O unilateralismo como ideologia se baseia em uma visão de mundo nacionalista e frequentemente xenófoba, onde a soberania nacional é considerada absoluta e qualquer forma de cooperação internacional ou multilateralismo é vista com ceticismo, já que (…) “na opinião da extrema direita, as elites globais exercem uma influência estrangeira indevida por meio de instituições multilaterais e organizações internacionais” (2025).

Diante de tal cenário, se faz urgente a reorganização da Organização Mundial do Comércio (OMC) para que se restabeleça e resgate a confiança no sistema multilateral.

A OMC hoje está paralisada entre promessas não cumpridas e uma ordem internacional em transformação. Reformar a OMC, ou refundá-la, significa reafirmar a centralidade do multilateralismo como um modelo de comércio internacional baseado na cooperação entre múltiplas nações, com regras que eliminem ou reduzam barreiras protecionistas e que reflitam os desafios de um mundo cada vez mais multipolar, interdependente e desigual.

O multilateralismo é uma ferramenta civilizacional, uma vez que os desafios centrais da humanidade, como pandemias, sustentabilidade do planeta, fome, guerras e migrações exigem soluções coletivas.

Para superar essa crise e bloquear o avanço da extrema direita, exige-se a reconfiguração das instituições internacionais em bases mais democráticas, representativas e transparentes, com maior protagonismo do Sul Global como agente ativo na definição de normas dos principais processos decisórios internacionais. A reforma da governança mundial não deve se limitar apenas à OMC. Agências como FMI e ONU também deveriam proporcionar condições para a prática do multilateralismo, de modo que ele passe a ser efetivamente um instrumento de reequilíbrio de poder, justiça global, na solidariedade e no pluralismo.

Também se faz urgente revalorizar os princípios fundamentais da Carta das Nações Unidas que possui em seus princípios originais “a cooperação entre os povos, a soberania dos Estados, o princípio da não-intervenção e a resolução pacífica de controvérsias”. Ela também destaca a importância de responsabilizar politicamente os Estados que violam estes princípios, (ONU, 1945).

As novas relações de poder no espaço mundial devem superar a lógica centro-periferia e se fundamentar na exigência de construção de novas formas de cooperação internacional baseadas na solidariedade entre os povos, na proteção dos bens comuns e na valorização da diversidade socioespacial do planeta.

Bibliografia

A Importância do Multilateralismo nas Relações Internacionais no atual contexto. Secretaria de Estado de Desenvolvimento Econômico de Minas Gerais, 2020, disponível em: https://desenvolvimento.mg.gov.br/assets/projetos/1084/3587df7c3e79cfc49cdb7a03261899fe.pdf

Alfredo, Taís – O retorno do mercantilismo na América de Donald Trump – Observatório da Imprensa03 de abril de 2025, Edição 1332. Disponível em: https://www.observatoriodaimprensa.com.br/economia/o-retorno-do-mercantilismo-na-america-de-donald-trump/

Cunha, Martim Vasques da – Quem são os intelectuais bilionários que preparam a ruptura apocalíptica de Trump – Folha de São Paulo, 19 /04/2025. Disponível em: 

https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2025/04/quem-sao-os-intelectuais-bilionarios-que-preparam-a-ruptura-apocaliptica-de-trump.shtml?utm_source=sharenativo&utm_medium=social&utm_campaign=sharenativo

Herz, Monica e Summa, Giancarlo – A extrema-direita como ameaça para a governança mundial. Instituto Humanitas Unisinos – IHU – 04 Fevereiro de 2025, disponível em: https://ihu.unisinos.br/categorias/648284-a-extrema-direita-como-ameaca-para-a-governanca-mundial-artigo-de-monica-herz-e-giancarlo-summa

ONU – Carta das Nações Unidas. Disponível em: https://brasil.un.org/sites/default/files/2022-05/Carta-ONU.pdf

SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. Rio de Janeiro: Record, 2000.

WTO – World Trade Organization – O que defendemos? – disponível em: https://www.wto.org/english/thewto_e/whatis_e/what_stand_for_e.htm

***

Mauricio Alfredo é Professor de Geografia, Geopolítica e Atualidades no Ensino Médio e Superior. Autor de material didático junto à Editora Companhia da Escola.



O post O desafio civilizacional de conter o unilateralismo e reinventar o multilateralismo apareceu primeiro em Observatório da Imprensa.

Adicionar aos favoritos o Link permanente.