Cheguei a Brasília na virada de 2002 para 2003. Tinha 24 anos, a vida inteira pela frente e uma mala cheia de sonhos, ideias e inquietações. Vinha de Cruz Alta, no interior do Rio Grande do Sul, e havia me formado há dois anos e meio em Fisioterapia. Antes de chegar ao Planalto Central, passei por Balneário Camboriú, onde abri meu primeiro consultório, ainda muito jovem, achando que a reabilitação neurológica — minha paixão — seria meu único caminho. Acabei descobrindo, ali mesmo, que reabilitar vai muito além de fortalecer músculos: é reconstruir vínculos, realinhar vidas, lidar com perdas, medos e com a forma como cada pessoa floresce — e, depois, envelhece.
Foi com três senhoras que atendi em domicílio, ainda em Santa Catarina — entre muitas conversas e exercícios de marcha — que comecei a perceber a complexidade de trabalhar com pessoas idosas. E todas as pessoas idosas, de alguma forma, enfrentam transtornos neurológicos e osteomusculares — é parte natural do envelhecer. O funcionamento do nosso corpo muda, mesmo sem doenças. Mas, na prática, são as mudanças na rotina, nas pequenas ações do dia a dia, que mais impactam.
Cada uma dessas senhoras, com sua história, suas fraturas — físicas e emocionais —, suas perdas, resiliência e silêncios, carregava nas articulações desgastadas, no desequilíbrio e no andar cuidadoso, um capítulo da história do envelhecimento feminino no Brasil. Com elas, aprendi que a fisioterapia, sozinha, não dava conta. Era preciso adaptar as casas, acolher as dores emocionais, orientar os filhos perdidos que não sabiam o que era cuidar — nem o que seria do futuro —, conversar com médicos e cuidadores, lidar com fraldas escondidas sob batas longas e com a vergonha que ainda é, para muitos, perder a autonomia.
Nessa época, meu noivo passou em um concurso público em Brasília e decidi me mudar também. Ele chegou antes; eu vim quatro meses depois — precisava fechar o consultório e vender meus equipamentos. Já informada de que havia pós-graduação em Fisioterapia Neurofuncional na Universidade de Brasília, nos mudamos para a SQN 209. Não nos casamos, mas eu casei com a cidade. E que casamento bonito o nosso.
Aqui, fui me aprofundando nas neurociências e logo mergulhei de vez na gerontologia, especialmente depois de me tornar estagiária no Centro de Medicina do Idoso, no Hospital Universitário de Brasília. Meus dois principais professores na UnB, ambos médicos geriatras, me marcaram profundamente. Com eles, aprendi, na prática, que cuidar não é apenas tratar doenças, mas enxergar pessoas — com suas histórias, contextos e singularidades. Foi uma fase maravilhosa da minha vida, em que a ciência caminhava de mãos dadas com a humanização. E isso era — e ainda é — fascinante.
Lembro sempre da frase de Oliver Sacks, médico neurologista e escritor que admiro desde a faculdade: “Não pergunte que doença a pessoa tem, mas que pessoa a doença tem.” É exatamente assim que pensamos em gerontologia. Não tratamos doenças; tratamos pessoas. Não é a patologia que guia o cuidado, é a pessoa. E, muitas vezes, isso significa optar por não intervir, quando a intervenção pode causar mais mal do que bem. Às vezes, manter o joanete e adaptar o sapato é melhor do que enfrentar uma cirurgia e toda a imobilidade que ela traz — extremamente prejudicial à pessoa idosa. Às vezes, não fazer quimioterapia é a escolha mais digna. O que nos guia é a busca por qualidade de vida — não por “ausência de doença”. O que importa são os valores pessoais do nosso paciente, quem ele é e como podemos ajudá-lo a manter seus costumes e aquilo que lhe dá vontade de viver, com o máximo de autonomia e independência possível.
Enquanto estudava, fui preceptora de estágio em uma universidade e atendia pacientes idosos em domicílio. Isso me permitiu mergulhar na realidade das famílias, vivenciar de perto o cuidado e as cuidadoras. Essa vivência foi fundamental para ampliar ainda mais meu olhar sobre o envelhecimento — um processo permeado por desafios físicos, cognitivos, emocionais e ambientais, influenciado por fatores biológicos, psicológicos e sociais. Eu só pensava: “Que ciência rica! Que privilégio poder exercer uma profissão que abraça o todo, e não apenas uma parte da pessoa.” Porque as pessoas são esse todo. Elas não são só braços, pernas, cérebros, ouvidos ou olhos. São a forma como interagem com o mundo ao seu redor.
Fiz pós-graduações lato sensu, mestrado, doutorado, diversos cursos… Estudei reabilitação vestibular, reabilitação cognitiva, ergonomia, moda inclusiva, design de mobiliário, decoração, psicanálise, mediação de conflitos — e por aí vai. Brasília me ofereceu espaço para crescer. Foi aqui que dei minhas primeiras aulas em graduação e pós-graduação, aqui que aprendi a apresentar trabalhos em grandes congressos e a ser palestrante. Foi aqui que entrei nos debates técnicos do Ministério da Saúde, onde trabalhei com políticas públicas voltadas à pessoa idosa e à pessoa com deficiência. Foi aqui que aprendi a dialogar com mundos diferentes, a confrontar o sistema público com o sistema privado — sem deixar de reconhecer o que há de bom no SUS. Foi aqui que construí minha trajetória como profissional, educadora, pesquisadora e consultora — e também como mulher, esposa e mãe. Meu marido cresceu em Brasília. Minha filha nasceu em Brasília. Hoje, esta cidade é o meu lar.
É simbólico perceber que os primeiros a chegar aqui também não nasceram nessas terras. Eram sonhadores como eu, vindos de todas as partes do país, para construir, tijolo a tijolo, essa cidade tão única. Tive o privilégio de cuidar de muitos desses pioneiros. Homens e mulheres que ajudaram a erguer não apenas as estruturas físicas de Brasília, mas também sua alma. Quantas histórias ouvi nesses anos. Quantas lições de coragem, criatividade e amor.
É fácil romantizar o envelhecimento, mas quem trabalha com ele sabe: envelhecer é um processo complexo, desafiador e, muitas vezes, solitário. Muitos dos meus pacientes pioneiros envelheceram longe da terra natal, longe da maioria dos seus parentes — mas com o orgulho de terem contribuído para algo maior do que eles. Cuidar dessas pessoas foi, para mim, um presente. Porque Brasília também é feita de histórias que ninguém conta. De saudades que ninguém vê. De trajetórias que desafiaram o tempo e deixaram marcas profundas nessa terra vermelha e nesse céu azul incomparável.
Envelhecer é uma arte. E viver em Brasília, também. É preciso aprender a contemplar o horizonte imenso, a suportar os silêncios do cerrado, a enfrentar o calor com elegância e a aproveitar cada estação com sabedoria. Assim como é na vida. Aqui, me tornei autora da minha própria história.
Neste aniversário de Brasília, só posso dizer: obrigada. Obrigada por me acolher, me desafiar e me permitir crescer. Obrigada por me ensinar que, mesmo sendo de fora, a gente pode criar raízes fortes. A gente pode florescer.
Parabéns, Brasília. Que sua história continue inspirando quem chega. E cuidando de quem fica.