Cinema da capital: luzes, câmera, Brasília!

tradição e resistência marcam o festival de brasília do cinema brasileiro

cab brasília 65 anos

Brasília nasceu em 1960, mas parecia já estar sendo filmada muito antes. Dos primeiros traços no cerrado aos enquadramentos grandiosos de suas avenidas vazias, a cidade sempre teve vocação de tela. Construída como cena, cenário e símbolo, carrega no corpo urbano e na alma coletiva a marca do cinema — não apenas como linguagem artística, mas como memória, crítica e resistência.

A relação entre cinema e cidade começa ainda na poeira vermelha dos anos 1950. Enquanto operários de todas as partes do país erguiam a nova capital, cineastas já apontavam suas câmeras para aquele espetáculo urbano. Em 1959, Eugene Feldman registrava os candangos em preto e branco; no mesmo ano, Frank Capra filmava seis horas da cidade em construção. Os rolos de Capra jamais foram encontrados. “Talvez eles sejam a própria cidade, filme que nunca termina”, escreveu Sérgio Moriconi em Apontamentos Para uma História.

“Brasília é uma cidade que nasceu sendo filmada. As imagens da construção parecem ecografias da própria cidade”, afirma o professor da UnB e cineasta Mauro Giuntini, em entrevista exclusiva ao Jornal de Brasília. “Desde o início, havia uma proposta, uma intenção: Brasília tinha um roteiro.” Para ele, a utopia modernista de Lúcio Costa e Niemeyer foi logo confrontada pela realidade autoritária do país. “Com apenas quatro anos de existência, Brasília viu o início da ditadura militar. Isso impactou diretamente sua formação — e, claro, o cinema produzido aqui.”

Referência ética e estética

Essas imagens não apenas documentaram uma cidade. Criaram um imaginário. A paisagem virou protagonista – e, por vezes, personagem de fundo, silhueta simbólica da história nacional. Em 1979, Vladimir Carvalho recupera os registros de Feldman em Brasília, Segundo Feldman e inicia, paralelamente, seu épico pessoal: Conterrâneos Velhos de Guerra, talvez o maior documentário já feito sobre a cidade.

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                                                Vladimir Carvalho. – Foto: Divulgação

“O Vladimir influenciou muito a minha vida — não só no cinema, mas fora dele também. Era uma referência ética e estética fundamental para o cinema do quadradinho”, relembra Giuntini. “O legado dele vai além dos filmes. É uma postura diante da vida, da cultura, da política.”

Ainda nos anos 1960, enquanto a cidade se consolidava, Darcy Ribeiro e Anísio Teixeira idealizavam a Universidade de Brasília como um polo intelectual e cultural. A chegada de nomes como Paulo Emílio Salles Gomes, Nelson Pereira dos Santos e Jean-Claude Bernardet reforçou esse espírito de vanguarda. Brasília queria ser mais do que centro de poder – queria ser lugar de criação, crítica, arte.

É nesse contexto que nasce o Cine Brasília, inaugurado em 23 de abril de 1960, três dias antes da fundação oficial da cidade. Projetado por Oscar Niemeyer e originalmente arrendado pela empresa Luiz Severiano Ribeiro, a sala se tornaria a mais emblemática do Distrito Federal. Em 1965, recebe a primeira edição do Festival do Cinema Brasileiro – evento que viria a se transformar no mais longevo e político festival de cinema do país.

“O Festival é tudo. É o coração do cinema brasileiro por aqui. Ele forma plateia, inspira realizadores, movimenta a cena”, diz Mauro. “O Cine Brasília é o templo. Um lugar simbólico e afetivo.” Segundo ele, foi ali que muitos brasilienses tiveram o primeiro contato com o cinema nacional e com grandes autores. “É central para o fortalecimento do cinema independente e para manter vivo o diálogo entre a cidade e o cinema brasileiro.”

Durante os anos de chumbo, o Festival foi palco de enfrentamento cultural à ditadura, acolhendo cineastas do Cinema Novo e da resistência. Glauber Rocha, por exemplo, exibiu A Idade da Terra ali em 1980, num momento de tensão estética e política. O público reagiu com vaias e discussões inflamadas. Era o quadradinho cumprindo sua função simbólica: capital também dos impasses e das disputas de narrativa.

Nos anos 1980, o Cine Brasília firmou parceria com a Embrafilme e manteve programação voltada ao cinema nacional. Na mesma década, outras salas ajudavam a formar o circuito local: o Cine Atlântida (1970), o Cine Karim (1973), o Cine Márcia (1974) e os cines Miguel Nabut, Badya Helou e Bristol, hoje extintos. O Cine Drive-in, inaugurado em 1973, também marcou época — e segue ativo até hoje como o último de seu tipo na América Latina.

A virada do milênio trouxe novos desafios. Os shoppings passaram a concentrar as salas comerciais, enquanto espaços históricos foram abandonados. O Cine Brasília chegou a fechar por problemas estruturais. Reformado em 2013 e reaberto em 2023, após o período da pandemia, o cinema voltou à ativa sob gestão compartilhada entre a Secretaria de Cultura e a organização da sociedade civil Box Cultural.

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    Cine Brasília durante o Festival de Cinema Brasileiro em 1978. – Foto: Arquivo Público do DF

Audiovisual pulsante

Hoje, com 606 poltronas, o Cine Brasília resiste como símbolo vivo de uma cidade que ainda se projeta. A cena audiovisual pulsa nos bastidores, nos festivais independentes, nos coletivos jovens, nos curtas premiados no mundo. É o caso da Mostra Brasília, que celebra o cinema feito por e para brasilienses, valorizando narrativas periféricas, LGBTQIAP+, indígenas e quilombolas.

Para Mauro Giuntini, essa diversidade é parte essencial da identidade local. “Temos gente que chegou aqui com a cidade ainda em construção, mas também realizadores que são filhos daqui — e já há uma segunda geração nascendo. São outras vivências, outras referências estéticas e temáticas. É um processo vivo. A cultura é viva. O cinema acompanha essa transformação.”

Brasília, muitas vezes vista como cenário, começa agora a ser percebida como personagem. Giuntini acredita que isso está mudando. “A cidade tem uma vivência de espaço que é única. Aqui é possível estar só com a natureza. Essa experiência molda a forma como a gente se relaciona com o mundo. E isso está impregnado nos filmes — mesmo que a cidade apareça mais como pano de fundo. Mas essa percepção está mudando com a diversidade de vozes que temos hoje.”

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