
A cultura urbana refere-se ao conjunto de manifestações, práticas e expressões culturais que surgem nas grandes cidades e são influenciadas por seu ambiente, contexto social e histórico. Brasília sempre se revelou um berço, sendo protagonista como Capital do Rock. No entanto, com o tempo, também foi sendo ocupada por outros estilos e manifestações artísticas que fazem do Distrito Federal um pólo abrangente. Hoje, há uma ampla variedade de elementos, como festivais que ocupam espaços muitas vezes esquecidos pelos brasilienses, as batalhas de rima que reúnem jovens na arte do improviso, os grafites que colorem a capital dando espaço a grandes artistas, além de muitas outras linguagens.
Quem vê hoje os traços coloridos nos muros, dentro e fora de grandes estabelecimentos comerciais e instituições de ensino, não imagina como a arte era criminalizada. Nascido e criado em Ceilândia, um dos mais antigos grafiteiros da capital, Gilmar “Satão” revela que quando começou a praticar a arte encontrou dificuldades. Na época, em 1990, o grafite não era tão bem visto como hoje. “Um dos principais desafios era apresentar uma cultura para uma sociedade que não estava acostumada com as cores nas ruas e passamos por muitos preconceitos. Quando iniciei, o próprio estado queria nos prender por fazer grafites nas escolas”, conta Satão. “Apagavam e diziam que não era legal ter desenhos coloridos em escolas e nas ruas. Foi um período conturbado para a nossa cena”, completa o artista, que fundou o “Os 3S”, primeira crew de grafiteiros do DF, em 1993, formada por Sowtto, Satão e Supla.


Graças a resistência de artistas como Satão, a arte foi tomando reconhecimento e a semente plantada nos anos 90 cresceu e se espalhou por todo o Distrito Federal e Entorno, gerando, assim, espaço para inúmeros artistas, além do seu próprio reconhecimento. Um desses nomes é o artista visual, grafiteiro e muralista Neew, que transforma espaços urbanos do DF em verdadeiras galerias a céu aberto. “Comecei em 2002, quando pintei meu primeiro graffiti e, desde então, não parei mais. Sempre fui fascinado por observar a cidade – sua vida, suas cores, seus detalhes – e acompanhar outros grafiteiros atuando nas ruas despertou em mim o desejo de também deixar minha marca”, revela. “Para mim, o graffiti não é apenas uma técnica, mas uma forma de expressar minha identidade, eternizar meu nome e dar vida ao meu personagem. Fazer parte desse universo urbano significa transformar o ambiente em uma tela vibrante, onde cada traço conta uma história e dialoga com o ritmo da cidade”, acrescenta.
Hoje, o grafite não só revitaliza fisicamente o ambiente urbano, mas também enriquece o imaginário coletivo, promovendo um sentimento de pertencimento e orgulho na comunidade. “Ao ocupar o espaço público com mensagens visuais intensas, ele expõe realidades muitas vezes ignoradas, servindo como um grito de resistência contra injustiças sociais e culturais. Essa expressão artística proporciona uma plataforma para que comunidades marginalizadas possam expressar suas histórias e reivindicações, influenciando a percepção das pessoas e despertando uma consciência crítica. Assim, o grafite não só enriquece visualmente o ambiente urbano, mas também estimula o diálogo e a empatia, convidando todos a repensarem as dinâmicas de poder e as questões sociais que moldam nossas cidades”, expressa o artista.




O Governo do Distrito Federal tem incentivado o grafite por meio de editais, revitalização de espaços públicos e promoção de intercâmbio cultural, assim a cidade pode apoiar e valorizar os artistas criando espaços de diálogo e de expressão artística que respeitem a espontaneidade e a autenticidade. “Além disso, parcerias com coletivos culturais, feiras e festivais dedicados à arte de rua podem incentivar a troca de experiências e tornar o grafite parte integrante da identidade da cidade. Investir em programas de incentivo, capacitação e exposições itinerantes ajuda a reconhecer o valor cultural e social do grafite, mantendo sua essência rebelde e inovadora”, diz Neww.
Empoderamento de artistas locais do quadradinho
Desde 2012, o Festival PicNik tem incentivado a economia colaborativa e artistas locais, fazendo parte de uma geração que ousou posicionar a capital como protagonista de suas vidas. O PicniK é uma importante plataforma para esse movimento se desenvolver, tomar corpo e evoluir, tanto por dar vitrine aos criativos locais, como por fazer o público passear por cenários mágicos e muitas vezes esquecidos ou subutilizados de Brasília, promovendo uma conexão afetiva e verdadeira via experiências simples, originais e inusitadas.
“Fomos importantes em um processo de redescoberta da cidade. Vale lembrar que quando começamos, em 2012, Brasília estava recebendo uma série de investimentos por conta do preparatório para a Copa do Mundo, por exemplo. No entanto, ainda era necessário vencer estigmas negativos, como insegurança e sujeira, que imperavam quando pensávamos em curtir a cidade de forma aberta, livre e espontânea, sobretudo em espaços públicos. Ao oferecer uma forma disso se dar com segurança, organização e ancorado nas belezas orgânicas locais, o efeito foi muito potente que reverbera até hoje”, conta Miguel Galvão, um dos organizadores do evento, que ocupa a cidade até hoje.



O evento, sempre gratuito, começa na hora do almoço e é indicado para todas as idades, sendo uma ótima oportunidade de se fazer um passeio divertido e pouco usual com a família, cachorros, vizinhos, paqueras e amigos há tempos não visto. Desenvolvido para proporcionar um ponto de encontro fértil entre o público e criativos locais: todos a favor da moda, arte, música, gastronomia, esportes e outras interações positivas. O PicNik sempre embala o público com DJs, músicos independentes de Brasília e bandas selecionadas para traduzir o clima e o tema de cada edição.
“A ideia é propor um encontro em harmonia, onde as diferenças sejam exaltadas como algo que nos fortalece e enriquece, e não que nos divide e empobrece. Como capital, poder oferecer aos seus habitantes uma experiência de sucesso que tem como pilar um dos fundamentos principais da fundação da cidade, tendo a diversidade como valor, nos aproxima de uma essência candanga muitas vezes deixada de lado”, explica Galvão.
Enquanto o PicNik ocupa a capital, o Sarau-Vá, nascido em Ceilândia e realizado na Praça da Bíblia, no P Norte, surgiu de muita da força de muita resiliência. Toda terça-feira — sem falta. Não importava se era feriado, véspera de Natal, se era Natal mesmo, se estava chovendo ou fazendo sol. O Sarau-Vá acontecia enchendo primeiro bares e depois a Praça de poesia, arte e resistência.
“A primeira dificuldade foi o estranhamento das pessoas. ‘Por que essa galera está aqui dentro de um bar recitando poesia? E que poesia é essa?’, perguntavam. Foi um processo de familiarização, um processo educativo mesmo. A gente teve que mostrar que aquele momento era diferente, era hora de fazer silêncio. E aí surgiu o nosso primeiro grito: ‘O silêncio é uma prece’”, conta Guilherme Azevedo, um dos idealizadores do Sarau-Vá.
Depois disso, o desafio foi estruturar. “A gente fazia tudo sem microfone, sem equipamento de som, muitas vezes dividindo espaço com som automotivo e o barulho natural da rua. Aos poucos, fomos conquistando parceiros, organizando melhor, e o Sarau foi crescendo. Esse processo de expansão nos tirou do bar e nos levou à praça”, conta, com anseio, Azevedo.


No entanto, ocupar a Praça trazia novos desafios: som, energia — que às vezes vinha emprestada de um vizinho — ou a necessidade de alugar um gerador. Para isso, passavam o chapéu, pedindo uma ajuda para comprar a gasolina. Ainda assim, estar na Praça era uma conquista diária. “Na periferia, onde quase não há opções de lazer, a praça é dividida por muitos movimentos — e nem sempre o nosso era bem-visto. Foi preciso vencer o olhar atravessado, fazer um trabalho de conscientização com a comunidade, mostrar a importância do que estávamos fazendo”, relembra Guilherme.
Hoje, com dez anos de história, sendo um importante pólo cultural, o Sarau-Vá tem contribuído para a identidade da capital, resgatando a força de seus organizadores, das suas raízes, do que se formou em Ceilândia — e, consequentemente, o Distrito Federal, que é esse mosaico. “A gente age como uma plataforma de impulsionamento. Eu sinto muito isso: a gente acolhe aquele artista que está começando a carreira, aquela pessoa que escreve seus versos e guarda num caderninho, sem mostrar pra ninguém… E coloca essa galera no microfone, no palco, com estrutura de qualidade, dentro da quebrada”, revela Gui.” A Meimei Bastos, por exemplo, que hoje é uma poeta e escritora incrível, recitou pela primeira vez no Sarau-Vá. E temos vários outros exemplos: gente que hoje lança livros, escreve poesias, grava discos, e que diz: “A primeira vez que tive coragem de pegar o microfone e falar foi no Sarau-Vá’. Então essa é uma das nossas maiores contribuições: multiplicar a palavra, multiplicar o fazer artístico e com qualidade”, completa.
Além de Guilherme Azevedo, Rafinha Bravoz e Sidney, o Bairrista, são duas pessoas que estão desde o começo do Sarau-Vá. No entanto, Guilherme ressalta também a participação de “cada artista que passou pelo Sarau-Vá e foi deixando ali sua marca, sua identidade É isso que faz o movimento ser tão forte: ele não é de uma pessoa só. É algo do coletivo. E se um dia eu não estiver mais aqui, ele vai continuar com essa galera que constrói junto.”
Rimas que enriquecem vidas
Nícolas Durães, também conhecido como Vírgulas, é músico, mestre de cerimônias, comunicador pela Universidade de Brasília e produtor cultural. Participa de importantes projetos, como a Batalha da Escada, Batalha do Neurônio e na produtora “DF É A SÍNTESE”.
Este ano, a Batalha da Escada, realizada na UnB, completa 10 anos. De acordo com Vírgula, são “dez anos somando na história e na cultura dessa cidade. Apesar de eu não estar presente na fundação, sei que de 2015 para cá a BDE passou por diversas dificuldades, mas também por diversos momentos bons”. A própria permanência dentro da UnB foi um desafio para as pessoas que estavam à frente do projeto alguns anos atrás, antes da Escada ter o tamanho que tem hoje, já tendo sido uma disciplina da Universidade e posteriormente um Projeto de Extensão Continuada da UnB.
“O ensino da Universidade é baseado em três pilares: Ensino, Pesquisa e Extensão e a BDE de certa forma atua nesses três campos simultaneamente. Falando especificamente sobre a extensão, uma vez um amigo me os olhos para o processo de ‘extensão inversa’ que a BDE realiza na Universidade de Brasília, levando um saber marginalizado, uma cultura das ruas para dentro de espaço estudantil, levando assim muitas pessoas que nunca nem sonharam em entrar na UnB para próximo da mesma”, conta Vírgula.
O hip-hop em Brasília tem uma história rica e única, marcada por uma forte ligação com a política, a periferia e a resistência cultural. Diferente dos grandes centros como São Paulo e Rio de Janeiro, onde a cena é mais mainstream, o hip-hop brasiliense sempre teve um pé muito firme na crítica social e na organização de base.
“O Hip-Hop é movimento de resistência e de luta na sua base. As batalhas são a nossa forma de ocupar os espaços que são nossos por direito. As batalhas geralmente acontecem nas praças, estações de metrô, terminais de ônibus… Ou seja, é a nossa forma de dizer que a cidade também é nossa, que nós existimos e somos seres pensantes e agitadores culturais”, observa o mestre de cerimônia da BDE. Para ele, as batalhas vão além das rimas. “Não é só o poder da voz, mas principalmente o da escuta. Nas batalhas aprendi que eu tenho sim voz para falar sobre minhas convicções e anseios, mas é ouvindo aos outros MCs e suas realidades que aprendo e muitas vezes moldam minha visão de mundo.”
O Distrito Federal tem evoluído, respeitado e abraçado cada vez mais o movimento das Hip-Hop. Atualmente, mais de 60 batalhas acontecem semanalmente, distribuídas em (quase) todas as Regiões Administrativas, um movimento impossível de ignorar. “Fica aqui meu agradecimento à figura do Max Maciel e todo o gabinete aba reta que vem fazendo um trabalho excelente de impulsionamento da nossa cultura e que nos ajudou a conquistar o título de Patrimônio Imaterial do DF. Que venham mais e mais anos de avanços na área cultural”, lembra Nícolas.



As irmãs Sabrina Soares Rodrigues e Maria Paula Soares Rodrigues formam a dupla “Margaridas” e unem diferentes gêneros musicais, com destaque para o Hip-Hop e MPB. Presentes no cenário atual da capital, elas encontraram diversos desafios no início da carreira. “Infelizmente encontramos diversos obstáculos, principalmente com relação ao machismo. Ser artista independente, mulher, preta e bissexual em uma sociedade e indústria que infelizmente ainda reverbera o preconceito é desafiador e de muita coragem. É resistência para permanecer com nosso trabalho e deixar nossa arte pulsar”, relata Sabrina.
Os primeiros trabalhos das Margaridas como artistas independentes foi por meio do rap, quando lançaram All the Pretty Girls que é uma música que conversa muito com o rap, trap e o pop. Porém, antes do hit, elas lançaram músicas voltadas para jazz, funk, r&b entre outros. “Nossa arte se conecta com sons distintos, e faz parte da nossa identidade a diversificação de estilos musicais nos nossos projetos. Nos divertimos muito ao experimentar e iremos continuar experimentando cada vez mais, também porque somos artistas pop.”
No entanto, elas dão recado para quem está começando: “Continuem persistindo, mesmo com as dificuldades que enfrentamos. A união realmente faz a força, e quando damos prioridade para outras mulheres, a certeza é que nós resistimos. Somos fortes, capazes, inteligentes, sempre solucionando qualquer desafio que chegue à nossa frente. Juntas somos mais, e a arte do DF ainda vai conquistar o mundo”.
Passos que lutam por resistência
O Breaking, um dos estilos mais marcantes de dança urbana, também faz parte da cultura urbana. Consolidado como uma das principais expressões do Hip-Hop, o Breaking vai muito além dos movimentos corporais – é um ato político, de resistência e de ocupação dos espaços públicos da cidade. Em Brasília, o movimento ganhou força nas ruas, nas praças de Ceilândia, nas estações de metrô, na Rodoviária do Plano Piloto e nas periferias do Distrito Federal, sendo usado como uma ferramenta de enfrentamento das adversidades e de expressão das emoções e vivências de quem dança.
Muito mais do que uma dança, o Breaking é um expressão corporal que combina cambalhotas, giros, mobilidade das mãos e dos pés, e acrobacias, sempre em sintonia com o ritmo da música. No entanto, para além da performance, os encontros de rua tornaram-se mais do que uma simples forma de entretenimento – passaram a ser espaços e ferramentas de aprendizado, convivência e inclusão social. Hoje, diversas iniciativas brasilienses utilizam o Breaking como recurso pedagógico capaz de ocupar a mente de crianças e jovens que enfrentam diversos desafios pessoais e sociais em suas trajetórias.



Alan Jhone, popularmente conhecido como B-boy Papel e reconhecido como uma das maiores referências nacionais do Hip-Hop, destaca que o Breaking ocupa diversos espaços públicos fazendo as ruas de palcos de expressão e resistência da juventude. “Tem o poder de transformar a depreciação em autoestima e promover um senso de pertencimento e união”. Ele também conta que em contextos marginalizados das periferias, “essa solidariedade pode ser uma forma de resistência coletiva contra opressões, criando redes de apoio que fortalecem a comunidade”.
Sem perder a essência de resistência e luta, o Breaking alcançou um novo patamar em 2024, ao estrear nos Jogos Olímpicos de Paris. O reconhecimento como esporte olímpico impulsionou ainda mais o desenvolvimento de competições e o crescimento da cena no Brasil. Um dos grandes exemplos é o Festival “Quando as Ruas Chamam”, realizado em Ceilândia, que se destaca como uma das principais plataformas de valorização do Breaking na América Latina, com duas vitórias consecutivas no Prêmio Latino-Americano de Breaking.
Além de dançarino, o B-boy Papel é também o idealizador e organizador do Festival “Quando as Ruas Chamam”. Para ele o evento se destaca como um festival de Breaking de grande relevância, reconhecido por sua capacidade de unir a crítica, a classe artística e o público em geral. “Com etapas eliminatórias realizadas em diversas regiões do país, o festival não apenas amplia seu alcance, mas também democratiza o acesso à arte, possibilitando que novos talentos sejam revelados e que suas trajetórias sejam valorizadas”.