O amor moldado pelas mãos do primeiro ourives de Brasília

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Brasília, com suas curvas modernas e formas abstratas, também pode ser cenário de histórias de amor. A consultora de vendas Victória Carvalho Oliveira Emerick, 30 anos, e o vendedor Gabriel Emerick Martins Pereira, 29, vivem um romance eternizado por uma aliança feita pelas mãos do primeiro ourives da cidade, João Miguel da Silva.

Os dois ficaram noivos às vésperas do aniversário de Brasília de 2024 com uma joia produzida por Miguel, de 89 anos, que chegou à capital em formação no dia 12 de dezembro de 1958, após uma longa viagem em um pau de arara. “Eu vim por necessidade. Morava na roça, na Paraíba”, relembra. Foram doze dias até chegar ao cerrado. Às 14h, desembarcava em solo candango. Às 15h, já estava empregado. “Não tinha ourives na região, só um relojoeiro. Comecei com ele e no outro dia fui a Anápolis comprar minhas ferramentas.”

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Foto: Du Castro

O ofício ele já dominava desde 1953, quando aprendeu com um primo, ainda na Paraíba. “Ele perguntou se eu queria aprender, e eu fui na hora. Era pra fazer um cordão. Me deram um pedaço pequeno da peça e disseram pra aumentar. Eu aumentei em três. Dei conta.” João Miguel fala com orgulho da profissão e afirma que, se pudesse nascer de novo, escolheria exatamente o mesmo caminho. “Sou muito inteligente, principalmente dentro da minha profissão. Peço a Deus só saúde para continuar.”

Com tanta história nas mãos, Miguel carrega lembranças que atravessam o tempo, como o dia em que esteve em Serra Pelada (PA), quando a pepita Canaã — de 67 quilos — foi retirada e levada para o Banco Central, em Brasília.

Ele também repassou seus conhecimentos. “Dei aula em muito lugar. Fui do Oiapoque ao Chuí ensinando a fazer joias.” Na época, era mais fácil passar adiante o saber: o ouro era mais acessível. Hoje, ele observa a escassez do material e o desinteresse dos mais jovens. “O ouro está muito caro. Pobre não compra mais. E os jovens também não querem mais aprender. Só os antigos continuam.”

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O primeiro ourives de Brasília João Miguel da Silva. – Foto: Amanda Karolyne/Jornal de Brasília

Mesmo assim, ele segue trabalhando. Durante um período, conciliou a produção de joias com o emprego de vigia noturno em uma escola, para complementar a renda. “De dia fazia minhas encomendas. À noite, virava vigia.”

Comerciante tradicional da W3 Sul, Miguel já teve loja em diversos pontos do Plano Piloto, até se fixar por 50 anos na quadra 505. Hoje, o espaço é tocado por seu filho, que trabalha como soldador de óculos. “Ele não quis ser ourives, mas é o único que faz óculos de titânio em Brasília. É o melhor que tem.”

O ourives testemunhou o auge e o declínio da W3. “Vi aquilo virar um shopping a céu aberto. Hoje, das oito salas onde minha loja está, só a minha continua aberta. É uma pena.”

Aposentar? Nem pensa. Embora hoje aceite menos encomendas e em um ritmo mais leve, João Miguel ainda está ativo. “Já operei o coração, a vista, a próstata, a garganta… Foi um bocado de coisa. Mas tô bem e, graças a Deus, ainda posso trabalhar.”

A vida de Miguel sempre foi simples e dedicada à família. Criou quatro filhos no Núcleo Bandeirante, onde mora desde que chegou. “Só saio de lá em outro pau de arara”, brinca. Durante a pandemia, perdeu uma das filhas. “Era meu xodó. Mas não posso brigar com Deus.”

Nos tempos livres, costumava visitar o Zoológico, a Água Mineral e acompanhar os desfiles do 7 de Setembro. Hoje, prefere o sossego de casa e seus filmes de faroeste. Nunca fumou ou bebeu. “Nem gosto de tumulto.”

Durante toda a vida, João Miguel produziu sem parar. “Se eu fosse contar todas as joias que já fiz, dava pra comprar um avião”, brinca. Cita trabalhos feitos para a ex-presidente Dilma Rousseff e aulas dadas até para uma embaixatriz do Japão. Uma cliente americana costumava encomendar mais de 200 peças por mês. “Tem joia minha até nos Estados Unidos.”

Mas é nas alianças que mora seu maior afeto. “Uma moça encomendou a de casamento, depois voltou aos 25 anos de casada para fazer outra. E depois, aos 50. Fiz mais uma. Isso me emociona.”

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Foto: Amanda Karolyne/Jornal de Brasília

Amor em Brasília

Uma das alianças mais recentes foi feita para o casal Victoria e Gabriel. Um ano antes do noivado, os dois decidiram juntar a data do pedido com o aniversário de namoro — 20 de abril —, às vésperas do aniversário da cidade. Gabriel queria algo especial. “Vi em algum lugar sobre o João Miguel, um candango que chegou em pau de arara e foi o primeiro ourives de Brasília”, conta. Impressionado, decidiu procurá-lo. “Achei que tinha tudo a ver com a gente. Gostamos tanto de Brasília…”

A aliança foi feita a partir de ouro retirado de joias da mãe de Gabriel. Um símbolo do amor que cresceu junto com o carinho que os dois têm pela cidade onde foram criados.

A relação com Brasília é afetiva. Victoria relembra que o pedido de namoro aconteceu no dia 20 de abril de 2017. “Queria uma data significativa. Mandei um áudio pro Gabriel com os dias que eu mais gosto… O 20 e o 21 são os mais especiais”, brinca. Coincidência ou não, ele escolheu o 20. “É romântico demais comemorar nosso dia junto com o aniversário da cidade.”

Nos passeios do casal, o roteiro é quase sempre o mesmo: conhecer cada cantinho do quadradinho. “A gente não saía pra cinema, era mais pra explorar a cidade”, lembra Victoria. Agora, planejam visitar o Cine Brasília — um dos poucos lugares históricos que ainda não frequentaram juntos.

O casamento foi em janeiro deste ano. Com parentes de fora, o casal tentou mostrar um pouco da cidade. Victoria conseguiu levar uma tia ao Santuário São João Bosco. “Ela é muito católica. Disse que parecia ter entrado no céu. E isso nos faz ver Brasília com outros olhos”, conta. Para ela, quem mora aqui muitas vezes esquece o quanto é privilegiado.

O pedido de casamento teve a cara da cidade: uma tour que começou com pedaladas no Parque da Cidade, passou pelo restaurante Líbano — um dos mais antigos da capital — e terminou com um passeio pela Torre de TV. Lá, compraram um mini ipê amarelo artesanal. “Temos uma relação com os ipês”, explica Gabriel. “Quando comecei a viajar muito a trabalho, escrevi um poema pra Victoria. Era seca, tudo cinza, mas toda vez que via um ipê amarelo, pensava nela.”

Desde então, os ipês viraram parte da história deles. “Agora tenho uma coleção”, brinca Victoria.

O ensaio de noivado foi feito em locais simbólicos: a 308 Sul, o Museu Nacional e a Catedral. “Brasília é o pano de fundo perfeito”, afirma. “Morar numa cidade tombada como patrimônio histórico é quase como viver num filme.”

Ela sonha com uma comédia romântica ambientada aqui. “Tipo Antes do Amanhecer, só que em Brasília. Sei que tudo é distante, mas se você pega uma quadra como a 308 Sul, dá pra fazer o roteiro desse filme.”

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