Na crise climática do Antropoceno, o homem quer colonizar a Lua

(Imagem: WikiImages/Pixabay)

Em 2020, a China se tornou o terceiro país a coletar amostras de material lunar desde a missão soviética Luna-24, de 1976. De lá para cá, além dos próprios chineses, ao menos outras três nações (Índia, Japão e Estados Unidos) lançaram sondas e pousaram rovers sobre o satélite natural terrestre, em missões dedicadas desde a exploração de órbitas lunares estáveis até o reconhecimento da superfície e estudo do solo por meio de experimentos científicos in situ.

Atualmente, chineses e norte-americanos protagonizam a nova corrida espacial, tendo como objetivo máximo levar o ser humano até Marte, o planeta mais próximo da Terra. Para tanto, a construção de uma base lunar, uma colônia terráquea na Lua, é vista como estratégica por ambos os países. O projeto Lunar Gateway, por exemplo, é encabeçado pela NASA, e já está em curso dentro do novo programa espacial estadunidense, o Artemis.

A imprensa anuncia cada novo intento, cada nova descoberta e intenção de explorar a Lua com grande entusiasmo e esperança, exaltando os esforços dos países rumo à conquista do espaço. Foguetes potentes e sondas equipadas que levarão a humanidade a um futuro glorioso, imagina-se.

Mas será assim mesmo? O passo para a Lua e o salto até Marte representam conquistas de toda a humanidade? Falta analisar criticamente a exploração espacial.

A “corrida do ouro” na Lua

Conforme a ciência avança na análise dos dados obtidos diretamente das missões in situ, cresce o interesse no potencial energético da Lua. Segundo informa a própria NASA, nosso satélite natural contém centenas de bilhões de dólares em recursos inexplorados, que incluem água, depósitos de hélio-3 – apelidado de “combustível do futuro”, por sua alta capacidade energética e sustentabilidade –  além de metais de terras raras.

Mas qual o real significado de um país projetar a colonização da Lua e pautar suas atividades científicas a partir do valor financeiro estimado para o que ali existe? Seria ético que essa nação fosse até a Lua, arrancasse toneladas de material, escavando crateras e vales, poluindo o ambiente lunar para em seguida enriquecer com os recursos extraídos? Lembre-se que a mineração é um processo extremamente agressivo do ponto de vista de geração de resíduos – Brumadinho e Mariana são os exemplos mais conhecidos pelos brasileiros.

É intuitivo pensar que nenhum país do mundo deveria possuir a gerência dos objetos celestes. Na história recente, tratados e acordos internacionais foram assinados, estabelecendo a Lua e os demais corpos do céu como bens comuns da humanidade, e definindo que os processos de exploração espacial devem mirar a cooperação mútua em prol de um valor científico comunitário. Na prática, o que se vê aponta em outra direção.

O Norte Global lidera as ações voltadas para a conquista do território lunar. Mais ou menos como uma repetição da expansão marítima dos séculos XV e XVI, precursoras do colonialismo europeu – e de tudo que daí decorreu. Aos povos do Sul Global fica relegado o papel de meros espectadores – ou de coadjuvantes, colaborando em pequenos empreendimentos complementares às grandes missões, na ânsia de não serem deixados para trás pelo foguete do progresso. 

No ritmo do capitalismo voraz do terceiro milênio, o que se vê é uma evolução de um cenário de exploração para uma industrialização espacial. É a proposta por trás do chamado New Space. Atualmente, muitas empresas privadas, a maioria startups, investem e recebem incentivos governamentais para desenvolver atividades no setor espacial, com projetos de engenharia, logística, transporte, localização de recursos valiosos etc. Depois, vendem seus serviços para grandes investidores interessado em explorar e extrair esses recursos.

O Antropoceno lunar

Em 2018, a NASA estimou a existência da alarmante quantidade de 227 mil quilos de lixo humano espalhados pela Lua, a maioria proveniente das missões Apollo do início dos anos 1970. A própria agência admite que a crescente exploração e extração dos recursos naturais poderiam colocar em risco a pesquisa e os ambientes lunares, tais como os mares de gelo dentro das crateras nos polos da Lua.

Muitos fenômenos naturais de nosso planeta, como as marés e a duração do dia, estão intrinsicamente ligados à interação gravitacional Terra-Lua. Daí decorrem cadeias de relações biológicas, se pensamos nos ciclos de vida de animais e vegetais. Assim como socioculturais, registradas em inúmeras mitologias, cosmopercepções e hábitos de agricultura e pesca de diversas comunidades. Nosso satélite ainda desempenha papel fundamental na evolução social do ser humano.

A ideia de um Antropoceno lunar, como sugerido em artigo publicado pela revista Nature em 2024, passa a fazer sentido diante do cenário que presenciamos, no qual as ações de interferência humana começam a surtir efeito na escala de tempo geológico da Lua.

A mídia de ciência ocupa-se quase sempre em reportar somente os avanços das potências tecnocientíficas globais, praticando uma espécie de servidão intelectual. Se não se questiona os problemas iminentes, o debate é raso, e a percepção crítica da sociedade, frouxa. A impressão que fica é que tudo vai bem, que o progresso avança em velocidade supersônica, e vende-se a ideia de que as tecnologias espaciais farão do mundo um lugar melhor.

Cabe à essa mesma mídia incentivar o senso crítico por meio da problematização, reportar e analisar os fatos em amplo contexto: se por um lado há o desenvolvimento científico e de novas tecnologias, movimentação da economia; por outro, segue-se a tendência de acúmulo de capital, políticas de exclusão, marginalização e manutenção de poderes hegemônicos – agora em escala interplanetária, pode-se dizer.

Quando e quanto se espera obter em retornos para a sociedade, que fomentem, de algum modo, a mitigação do próprio Antropoceno terrestre?

De seu lado, o empreendedorismo alimenta o estabelecimento de uma especulação da Lua e de seus recursos, com a possibilidade real de mineração de sua superfície. Sem mencionar a questão do turismo espacial que atende os bilionários. Os tratados e acordos espaciais, na época em que foram assinados, nada especificavam sobre os limites de interesses da iniciativa privada, simplesmente porque essa possibilidade nem sequer era cogitada.

Historicamente, temos a tendência em transformar a exploração em extrativismo agressivo e desenfreado. Foi assim que chegamos à crise climática deste século. Agora, seguimos a direção da expansão das fronteiras do planeta Terra e, com elas, também dos hábitos perpetuados em solo terrestre.

Nota

O uso do termo ‘homem’, no título, no lugar de humanos/ser humano é proposital, para enfatizar a associação entre colonização e a cultura patriarcal.

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Raphael Alves é bacharel em Física pela Universidade Estadual de Campinas, mestre e doutor em Astronomia pela Universidade de São Paulo e foi aluno da especialização Jornalismo Científico do Labjor.

Este texto é parte das atividades da disciplina Oficina de Jornalismo Científico III, ministrada pelo professor Rafael Evangelista, na qual exercitou-se a crítica da mídia como gênero jornalístico.

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