“Tendências perigosas” e a urgência de comunicar ciência com mais profundidade

(Imagem: M. Richter por Pixabay)

Uma reportagem de 2024 da BBC News Brasil, intitulada Protetor solar faz mal? Os riscos de vídeos nas redes sociais que acusam produto de causar câncer, chama a atenção para um fenômeno atual e preocupante: conteúdos em redes sociais, como TikTok e Instagram, que têm colocado em xeque a eficácia do uso do protetor solar. Uma tendência perigosa, como a reportagem nomeia – com razão.

O texto faz um bom trabalho em desmentir algumas dessas informações falsas e alerta para os perigos de questionar um item tão essencial para a saúde da pele. Mas será que vai fundo o suficiente? Aqui, as coisas parecem ficar um pouco complicadas. Uma análise mais detalhada da reportagem mostra limitações que podem comprometer a profundidade esperada de um texto sobre ciência e saúde. Em meio a uma avalanche de desinformação nas redes, a BBC News Brasil, que é reconhecida por sua credibilidade, poderia (e deveria) ter entregado algo mais robusto.

Logo de cara, a introdução prende o leitor ao identificar a tendência perigosa e expor o problema de maneira objetiva. Ao apresentar influenciadores, palestrantes, modelos e até médicos como os disseminadores da ideia de que protetores solares supostamente são inúteis ou causam doenças, a reportagem cria um impacto inicial forte. A estratégia de usar uma pergunta no título também funciona: dá vontade de clicar e descobrir. Mas, ao longo do texto, as limitações vão aparecendo. Ele deixa claro que esses vídeos nas redes não têm base científica e contradizem o consenso de especialistas. A questão é a abordagem: a reportagem não vai além da constatação óbvia de que essas informações são falsas. Faltaram explicações mais didáticas sobre por que o protetor solar é seguro e importante. E, também, faltou analisar de onde surgem essas ideias e o que elas significam para o público.

Ao final do texto, o leitor pode até concluir que a resposta para a pergunta do título é “não”. Mas será que entende, de fato, por que o protetor solar não faz mal? Ele também pode compreender os riscos da tendência desses vídeos nas redes sociais, mas será que sabe o que fazer em relação a isso ou como se proteger deles?

Em resumo, a reportagem toca em um ponto relevante e urgente, mas perde a chance de aprofundar o debate e equipar o leitor com mais conhecimento e senso crítico. Em um momento em que a ciência e a saúde estão sob ataque constante, o público merece e precisa de mais do que uma resposta simples ao problema.

Por onde anda a profundidade científica?

A BBC News Brasil até menciona estudos, especialistas e evidências científicas que defendem o uso do protetor solar, mas não os explora nem aprofunda. E isso é discutível. Onde estão os nomes dos estudos? E a metodologia e as conclusões? Não há um caminho claro até essas informações, porque a reportagem não traz links nem detalha essas pesquisas, que de fato existem. Isso pode acabar enfraquecendo a credibilidade do texto, já que o leitor é convidado a confiar às cegas nas fontes, sem acessá-las.

A única pesquisa linkada é a DermTok: Who’s Talking Sun? A Cross-Sectional Analysis of Sun Protection Content on TikTok, da Universidade de Miami. Mesmo assim, a abordagem é limitada: o estudo é citado somente para reforçar a ideia de que a tendência perigosa existe e é nociva. No entanto, o texto não aproveita a pesquisa como um gancho para explorar dados que mostram como e por que os protetores são benéficos.

A reportagem também menciona que há uma extensa quantidade de estudos confirmando que o protetor solar ajuda a prevenir doenças graves, como câncer de pele. Mas não traz números, dados, fontes. A mensagem “use protetor” até chega, mas chega sem força.

A falta de profundidade científica prejudica não apenas a própria reportagem, mas a compreensão pública da ciência. Para desmentir informações falsas é preciso se comprometer mais e com mais argumentos.

Arranhando a superfície

Um ponto que enfraquece a reportagem é o uso limitado do potencial das fontes. A BBC News Brasil consulta dermatologistas e pesquisadores, mas muitas das declarações escolhidas são superficiais e repetitivas. É como entrevistar alguém somente para dizer o óbvio: que os vídeos são perigosos e que os protetores solares são eficazes.

Além disso, faltou um contraponto mais estruturado. Os vídeos são apenas descritos como baseados em informações falsas – e sim, isso é real. Mas seria muito mais interessante e educativo se a reportagem tivesse analisado como essas fake news são construídas e por que elas se espalham tão facilmente. O que faz com que as pessoas acreditem nelas? Que tipos de argumentos esses vídeos usam para parecer mais convincentes? Isso ajudaria o leitor a identificar esses padrões em suas próprias redes.

A reportagem também menciona apenas brevemente a nova diretriz institucional de proteção solar da Austrália, que representa um marco científico e traz boas práticas sobre o uso correto de protetores solares. Mas não aprofunda, não explica quais são as recomendações ou por que isso é tão relevante. Em um momento oportuno para reforçar a importância do protetor solar e contextualizar o avanço, mais uma vez, o texto arranha a superfície.

Abordagem estática x assunto dinâmico

A reportagem poderia ter sido enriquecida com recursos visuais. Gráficos, tabelas, infográficos – tudo isso ajudaria a ilustrar informações cruciais, como a ação do protetor solar na pele, os danos causados pela exposição aos raios UV e até informações sobre como utilizar o produto. Esses elementos não só deixariam o texto mais dinâmico e visualmente atraente, como fariam um trabalho de educação científica, algo que parece ter ficado em segundo plano.

Quanto à linguagem, ela é acessível, o que é um princípio do jornalismo, mas falta mais assertividade. Ao invés de ir direto ao ponto e entregar explicações completas e práticas, o texto acaba se perdendo em alguns momentos. O leitor termina a leitura informado sobre o problema, mas sem ferramentas práticas para lidar com ele. Por que não incluir dicas sobre como identificar informações confiáveis sobre saúde nas redes sociais, por exemplo? Insights assim seriam extremamente úteis para lidar com a tendência perigosa.

Reconhecer o problema é o primeiro passo, mas… 

Quando o assunto é saúde pública e ciência, o jornalismo precisa ir além do básico. A reportagem da BBC News Brasil reconhece o problema da desinformação sobre os protetores solares e aponta sua gravidade, mas não entrega um contraponto combativo. Faltaram links para estudos, dados concretos que mostrem os benefícios do protetor, aspas realmente informativas e até formatos inovadores que tornassem o assunto mais acessível e interessante para o público geral. Essas escolhas editoriais acabam enfraquecendo tanto a recepção quanto a compreensão geral do tema.

Frente à desinformação, é preciso mais do que reconhecer o problema. Ir além do “isso é falso” e desarmar as estratégias que tornam as fake news tão atrativas. Em geral, vídeos virais apostam em narrativas simples, emocionais e recheadas de supostas “descobertas exclusivas” – elementos que o jornalismo tradicional muitas vezes ignora. Cabe à imprensa competir com mais clareza, acessibilidade e engajamento, não só apresentando os fatos, mas recuperando a confiança do público e neutralizando o apelo de conteúdos desinformativos.

A reflexão que fica é sobre o papel do jornalismo na era digital. A reportagem acerta ao denunciar a irresponsabilidade de vídeos que espalham desinformação, mas também carrega a responsabilidade de ser um modelo de divulgação científica que sabe desafiar à altura. Sem isso, até as melhores intenções podem se perder no ruído das redes sociais – e isso é um risco que não podemos correr.

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Lethícia Bueno é jornalista e foi aluna da especialização em Jornalismo Científico do Labjor. Este texto é parte das atividades da disciplina Oficina de Jornalismo Científico III, ministrada pelo professor Rafael Evangelista, na qual exercitou-se a crítica da mídia como gênero jornalístico.

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