Crise de credibilidade

(Foto: Tekosin Demirr/Pexels)

Numa passagem bastante citada do livro The press and foreign policy (1963), o cientista político Bernard Cohen (1914-2003) afirma que se a imprensa geralmente não diz ao eleitor “como” deve pensar, possui, contudo, uma grande capacidade em sugerir “sobre o que” pensar. A frase de Cohen resumia de modo feliz o fato de que a imprensa, em sua rotina produtiva, seleciona e divulga temas, acontecimentos e personagens que competem entre si pela atenção da mídia e, por extensão, da sociedade. A visibilidade e a proeminência de determinados temas em detrimento de outros num período delimitado (uma campanha eleitoral, por exemplo) foram definidas pelos pesquisadores estadunidenses Maxwell McCombs (1938-2024) e Donald Leslie Shaw (1930-2017) como a “agenda da mídia” e os temas discutidos e considerados importantes pelos indivíduos (audiência), como a “agenda do público” (Public Opinion Quarterly, n. 36, p. 176-187, 1972).

O prodigioso desenvolvimento dos meios de comunicação, ao longo do século XX, modificou todo o ambiente político. O contato entre líderes políticos e sua base, a relação dos cidadãos com o universo das questões públicas e mesmo o processo de governo sentiram, e muito, o impacto da evolução tecnológica da mídia. Em seu livro pioneiro, publicado na década de 1920, Walter Lippmann (1889-1974) lamentava o fato de que “a ciência política é ensinada nas faculdades como se os jornais não existissem” (Public Opinion, 1922). Cem anos depois, é possível dizer que a ciência política já reconhece a existência do jornal, bem como do rádio, da televisão e até da internet. Mas em geral não vê neles maior importância.

O conceito de “democracia” é envolto em polêmica. Por um lado, a palavra significa “governo do povo”. Por outro, ela se refere a um conjunto de instituições políticas, em particular a eleição popular para as posições de poder. Os dois sentidos não se casam. Nos regimes que em geral aceitamos como “democráticos”, o povo não governa. Sua influência nas decisões políticas é filtrada por mecanismos de intermediação – que podem ser, e geralmente são, enviesados em favor de alguns interesses e grupos sociais e em detrimento de outros.

Um desses mecanismos de intermediação é a representação política. Outro é a mídia. Os meios de comunicação de massa são (1) a principal fonte de informação dos cidadãos sobre o mundo social, (2) o principal canal de difusão dos discursos dos líderes políticos e (3) o principal ambiente em que se dá o debate político. Sua centralidade na política contemporânea é admitida pelo público em geral e comprovada pela atenção obsessiva que os candidatos às posições de liderança dedicam à gestão de sua imagem nos meios, mas é, em geral, negligenciada pelos modelos da ciência política – e, claro, negada pela própria mídia. 

A maioria dos brasileiros (56,5%) se diz insatisfeita ou muito insatisfeita com o funcionamento da democracia hoje no país, enquanto outros 38% se declaram satisfeitos ou muito satisfeitos; 5% preferiram não responder à questão. Apesar da insatisfação, 58,3% dos brasileiros concordam que a democracia é preferível a qualquer outra forma de governo (A Cara da Democracia, 2024). Os dados integram os estudos do Instituto da Democracia (INCT-IDDC), formado por pesquisadores das universidades UFMG, Unicamp, UnB e Uerj. Realizada anualmente desde 2018, a pesquisa faz um retrato atualizado de como o brasileiro enxerga a democracia no país, como se apropria de informação política e como se posiciona em relação a valores e temas em destaque a cada ano.

Por sua vez, em pesquisa realizada pelo Reuters Institute (2023), a respeito do consumo pessoal de notícias e de conteúdo no País, 41% dos brasileiros evitam consumir informação de veículos jornalísticos. O meio digital, incluindo as redes sociais, são a principal fonte de informação para 79% dos brasileiros. A televisão é citada como fonte principal de notícias para 57% dos entrevistados brasileiros no estudo, enquanto veículos impressos (jornais e revistas) são a fonte principal de informação de 12% das pessoas. Convém frisar que é antiga a crise de credibilidade enfrentada pelos meios de mediação midiática. Por sinal, o sistema falacioso costuma ser implacável, tomando conta de todas as atividades humanas que se afugentam da ética.

A propósito, pelo caminho da ironia enquanto recurso crítico dos costumes sociais, Joaquim Manuel de Macedo (1820-1882), em A carteira de meu tio (1855), já lançava denúncia sobre o problema da corrupção generalizada:

“Se não fosse a mentira, como se sustentariam as facções políticas?… como viveria a imprensa diária?… como se haveriam as direções e os diretores de teatros?… como fariam as moças pazes com os seus namorados?… como os advogados teriam causas de que tratar, e os escrivães custas que cobrar?… A mentira esconde-se por detrás dos reposteiros de todas as secretarias de Estado, dentro da manga do frade, no acolchoado da casaca do taful, nos postiços da moça casquilha, no carmim das faces da matrona desbotada, na cabeleira do velho careca, nos atestados de muitos médicos, em todos os diplomas eleitorais, nos protestos de todos os atores, nas declarações dos candidatos às deputações, nos títulos de nobreza de todos os fidalgos, no pincel dos pintores, na pena dos romancistas, no capelo dos bacharéis e doutores, nas lágrimas das viúvas, nos sorrisos das donzelas, nas cortesias dos diplomatas, nas promessas dos ministros de Estado, nos desenganos de todas as mulheres, nas palavras dos vivos e nos epitáfios dos mortos!”. Não à toa, para o exercício da Ética na prática, devemos antes definir o que seria uma ação antiética: é toda conduta praticada por uma pessoa ou grupo de indivíduos que seu resultado irá refletir em qualquer forma de prejuízo a outro cidadão ou grupo de pessoas.

***

Marcos Fabrício Lopes da Silva é Doutor e Mestre em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais (FALE/UFMG). Poeta, escritor, professor e pesquisador. Jornalista e autor do livro Machado de Assis, crítico da imprensa (Outubro Edições, 2023). Participante do Coletivo AVÁ, coorganizador do Sarau Marcante e Membro da Academia Cruzeirense de Letras – ACL (Cruzeiro-DF).

 

O post Crise de credibilidade apareceu primeiro em Observatório da Imprensa.

Adicionar aos favoritos o Link permanente.