Cézanne protagoniza livro que estuda o mundo através da arte, ciência e natureza

paul cezanne

GABRIELA LONGMAN
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS)

Um dos grandes nomes da história da pintura, o pós-impressionista, Paul Cézanne sofria com transtornos na visão: os olhos ardiam, a vista embaçava, e as longas horas debaixo do sol para pintar a montanha Saint-Victoire tornavam-se um tormento.

É a partir desse episódio verídico que a escritora francesa Anne Sibran constrói “O Primeiro Sonho do Mundo”, lançado em 2022 na França e há poucos meses no Brasil com tradução de Adriana Lisboa.

Imaginando o encontro fictício entre o pintor e um oftalmologista especializado em curar cegos de nascença, ela propõe uma incursão romanesca sobre o olhar e o deslumbramento do mundo, numa costura entre história da arte e da ciência.

Comecemos pela história da arte: estudando biografia e personalidade do pintor de Aix-en-Provence, a escritora recria este Cézanne que murmura “não saiba nada, esqueça tudo”, quando está diante do cavalete, numa pedra em meio à mata mediterrânea, com “com o corpo que transpira, com o peso das coisas, sua pobre vida, o cheiro de alho na ponta dos dedos”. A revolução no modo de pintar passava, antes de tudo, pela desaprendizagem.

No que diz respeito à ciência, Sibran adentra estudos e tratados de época sobre a anatomia ocular para falar do jovem médico que, passado o cristalino, “vê finalmente o fundo do olho: uma parede púrpura desdobrada numa estrutura de árvore sobre uma madrugada de primeira manhã do mundo”.

Ao receber o pintor para um tratamento de vários dias em seu consultório, começa uma relação marcada pela curiosidade e admiração mútuas, com conversas acompanhadas por bolinhos e fumo de cachimbo.

“Esse romance acabou juntando três coisas: meu amor profundo por Cézanne, o contexto histórico da industrialização na França e a corrida do ouro na Califórnia”, diz Sibran à reportagem.

Sem dar muito spoiler, podemos dizer que a Califórnia surge na figura de Kitsidano, jovem indígena de etnia Pomo e terceira personagem do enredo. Na trama, sua figura encarna uma espécie de consciência profunda da natureza, com elementos xamânicos e animistas que se articulam com as visões do médico e do artista.

“Eles representam partes diferentes de nós mesmos, de nossa busca por aquilo que existe de autêntico e por um arrebatamento diante do mundo”, sintetiza a escritora, falando por telefone de uma cabana no Massivo Central, uma das regiões menos povoadas da França.

Apaixonada por etnologia desde a juventude (“fui completamente atravessada pela leitura do ‘Pensamento Selvagem’ de Lévi-Strauss”), Sibran estudou quechua e viveu por anos no Equador, onde até hoje passa parte do ano trabalhando em projetos de educação e conscientização ambiental.

“‘O Primeiro Sonho’ foi escrito quase inteiro na Amazônia [equatoriana]. Foi justamente ao presenciar o impacto do desmatamento e da devastação que decidi me aprofundar no livro”, lembra, ressaltando o fato de que, numa época de plena expansão do capitalismo industrial, Cézanne tinha todas as manhãs um encontro com a montanha e, segundo relatos, tecia longas conversas com as árvores e com as pedras.

Com uma carreira que inclui outros romances -como “Je Suis la Bête” ou “Enfance d’un Chaman”, nenhum deles publicado no Brasil-, histórias em quadrinhos, literatura infantojuvenil e ficções radiofônicas para a France Culture, Sibran se interessa especialmente pelos sons que mapeiam os lugares por onde passa.

“Tive a chance de trabalhar com o [artista plástico dinamarquês] Knud Victor, um dos grandes mestres da arte sonora. Aos poucos, comecei a andar com o gravador e registrar as paisagens por meio dos sons e pequenos ruídos que produziam.”

Essa ideia de que os lugares falam -e precisam ser ouvidos- permeia todo o romance, afinal “como as pessoas, eles estão cheios de palavras, risos de crianças, pegadas de animais, sepulturas”. “Como as pessoas, têm gratidão por quem os olha e os vê.”

Para quem se interessa por romances como “Escute as Feras”, da também francesa Nastassja Martin, a jornada de “O Primeiro Sonho do Mundo” articula questões análogas -e profundamente atuais-, sobre uma civilização que parece se distanciar a passos largos de sua natureza essencial.

“Não suspeitamos até que ponto o mundo já sufocava, na época, com aquilo que o asfixia hoje. Porque há, no fundo, uma grande violência em separar o homem dessa terra viva, onde ele se infunde desde sempre e sem a qual não pode realmente se conhecer, encontrar-se consigo mesmo”, diz um trecho do romance, que para leitores brasileiros pode evocar certas passagens do “Futuro Ancestral” e outros escritos do líder indígena Ailton Krenak.

Embora o texto às vezes exagere na oposição entre certa natureza idílica e certa civilização corrompida, índios puros e garimpeiros gananciosos, a incursão por Aix-en-Provence, Marselha, Paris, São Francisco, pincéis, instrumentos ópticos, córneas e cristalinos embasam uma leitura que inclui ainda aparições rápidas de personagens célebres da época como o escritor Émile Zola ou o chamado “père” Tanguy, dono de uma loja de tintas frequentada pelos impressionistas, que teve sua figura imortalizada por Van Gogh.

Para seu próximo romance, Sibran está criando um enredo em que costura duas florestas nos dois países que atravessam sua vida -a Yasuní, no Equador, e Massane, na França. “Muitas pessoas nunca pisaram numa floresta primária. Se, pela literatura, eu puder transportá-las para dentro desse universo, acho que temos um bom começo.”

O PRIMEIRO SONHO DO MUNDO
Preço:
R$ 65,90 (184 págs.)
Autoria: Anne Sibran
Editora: Relicário Edições
Tradução: Adriana Lisboa

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