A importância dos desimportantes

(Imagem: Isa KARAKUS/Pixabay)

Como relatou o jornalista Gilvandro Filho, Reginaldo Rossi (1944-2013) protagonizou uma das cenas mais icônicas da política brasileira. No ano de 1986, durante um showmício de Miguel Arraes (1916-2005), na Praça Convenção, em Beberibe, no Recife, o cantor que arrastava multidões e havia sido a estrela da campanha vitoriosa do então prefeito do Recife, Jarbas Vasconcelos, subiu ao palco e após as falas de apoio ao então candidato Arraes, Reginaldo protagonizou a cena da noite ao cantar: “Eu devia te odiar, no entanto, só sei te amar…”. O candidato que sempre carregava um tom sisudo, não resistiu. Considerando a importância dos desimportantes, O Rei do Brega desenvolveu a ironia como atividade política e soube cantar a voz de um Brasil plural, porém fragmentado. 

Diminuir o hiato existente entre os privilegiados e os desvalidos passa necessariamente por dois caminhos. Um: distribuição de renda mais justa. O outro: melhor qualidade da educação. São duas guerras que o país se nega a enfrentar desde as Capitanias Hereditárias. Não há salvação para o mundo pela violência ou pela eliminação daquele que pensa diferente. Ditadura nenhuma presta. A saída está na democracia, no debate de ideias, em busca do entendimento, da paz, do convívio plural. Os direitos individuais e a liberdade de opinião e expressão são tão sagrados quanto os direitos coletivos e o mínimo necessário para qualquer pessoa levar uma vida decente, com casa, comida, saúde, educação garantidas. Aqui e em qualquer lugar do planeta. Sim, é uma pauta da qual nenhuma nação pode ficar de fora. Assim como há regras para um país participar do mercado globalizado, cidadãos civilizados, de esquerda e de direita, no mundo inteiro, precisam estabelecer o tratamento mínimo indispensável que cada Estado deve garantir ao ser humano para lhe conferir dignidade. Sim, falo de uma revolução globalizada. Sem bravatas nem fanfarronices.

O cidadão mediano, aquele que, como eu ou você, caro leitor, tem mais informação do que poder, mais desejo de contribuir para o bem público do que recursos para realizá-lo, mais esperança no futuro do que rancor pelo passado, mais interesse na estabilidade política e econômica do que ressentimento e desejo de ver o circo pegar fogo, encontra-se desorientado. Somos bombardeados por diagnósticos basicamente corretos e prognósticos interesseiramente catastróficos. Em nosso país, 90% ganham menos de R$ 3.500 por mês. A renda média mensal dos 5% mais ricos é de pouco mais de R$ 10 mil. E 1% dos brasileiros ganha mais de R$ 28 mil por mês. São os ricos de verdade. A elite. Um por cento. A massa de pobres, portanto, decide o resultado eleitoral das urnas. Porém, os titulares do mecanismo decisório não foram educados na arte da busca do bem comum.

A escola nos diploma, o que equivale, para os desassistidos, a algumas cartas de alforria e, para os privilegiados, a alguns passaportes para o poder. Quase nunca a escola traduz as aspirações de seus alunos. Raramente leva em conta a bagagem cultural que acumularam durante anos e anos de experiência viva. Grandes civilizações existiram, certamente. Contudo, todas elas falharam em um ponto: limitaram a importância dos desimportantes. Uma enorme quantidade de pessoas se tornou fabulosamente rica nesses sistemas, e um exército inteiro foi mobilizado em torno desse processo de segregação continuada. “Existe um contrato da democracia com a desigualdade”, conforme alerta a antropóloga e historiadora Ann Stoler (Jornal da Unicamp, edição 698, Campinas-SP, 13 a 26 de novembro de 2023).

A discriminação negativa ainda rege a maioria das decisões de poder e saber em sociedades governadas por “relações coloniais”. O mercado da exclusão e da indiferença mina por todos os lados o conjunto de direitos que dá à pessoa a possibilidade de participar ativamente da vida e do governo do seu povo. As disparidades brasileiras começam no vergonhoso fato de que o Brasil é o oitavo país mais desigual do mundo, mas é também a oitava maior economia do planeta. Acumula o título de quarto maior produtor de alimentos, apesar de o fantasma da fome ainda nos perseguir. Constata-se que estamos longe do processo democrático que assegure a compensação das desigualdades, segundo aponta o estudo O dilema do brasileiro [recurso eletrônico]: entre a descrença no presente e a esperança no futuro (FGV, 2017), coordenado pelo sociólogo Marco Aurélio Ruediger:

“Os resultados encontrados sugerem um brasileiro indignado com as crises política, econômica e institucional que atravessamos e, como consequência desse cenário, é um indivíduo que desconfia da política, dos partidos e dos políticos que atuam hoje. Em consequência disso, diversas formas de protestos políticos aparecem, destacando-se aí a ampliação para um campo que parece se fortalecer nesse ambiente: as redes sociais. É possível observar nas variadas formas de protestos políticos uma significativa, porém preocupante, mobilização em torno de uma manifestação de apoio a tipos de lideranças com perfis bastante controversos, como aqueles com simpatia por medidas autoritárias”. Esperança, otimismo e cordialidade não estão sendo suficientes para formar gente que conheça os nós que apertam o País e saiba como desatá-los. Aqui e alhures, entre o despreparo, o desvario e o aventureirismo, responda comigo: nenhuma das alternativas anteriores.

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Marcos Fabrício Lopes da Silva é Doutor e Mestre em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais (FALE/UFMG). Poeta, escritor, professor e pesquisador. Jornalista e autor do livro Machado de Assis, crítico da imprensa (Outubro Edições, 2023). Participante do Coletivo AVÁ, coorganizador do Sarau Marcante e Membro da Academia Cruzeirense de Letras – ACL (Cruzeiro-DF).

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