Por que deveríamos ter ídolos?

(Imagem: Александр Летягин/Pixabay)

Desde a idade clássica, precisamos de um ídolo para preencher o vazio criado pela dúvida sobre a existência humana, sempre procurando álibis para comprovar quem somos e para onde vamos. Dessa forma, há na humanidade um apego às crenças – a necessidade de um ídolo – que vai além da busca pela esperança e se torna em uma dependência pela fé. Assim, nós, seres humanos, criamos personagens e ídolos que se tornam “literalmente eu” [1], sejam atores de Hollywood, deuses, mitos, rockstars ou ideologias políticas.

A crença presente nos mitos da Grécia Antiga continua viva até hoje. Dessa forma, o advento dos influencers mostra sua origem na adoração à natureza e à criação de um criador na cultura dos povos antigos, que agora se transformam em frustrações virtuais e idealizações de vidas perfeitas. Assim, sempre demonstramos a necessidade de mais de ídolos do que realidades para amar intensamente: a preferência de um “deus” – entre muitas aspas – em razão do homem, parafraseando Nietzsche em O Crepúsculo dos Ídolos.

Mas, saindo do Crepúsculo e indo além do “ópio do povo” [²], o conceito de idolatria atravessa barreiras, ora religiosas, ora políticas. Com isso, Neil Gaiman, em Deuses americanos, consegue tratar do conceito de “ídolo/deus” com maleabilidade, contrapondo os deuses clássicos das antigas mitologias com os novos deuses: a tecnologia, a mídia, a globalização, entre outros. Essa reformulação do conceito cria novas reflexões sobre a nossa dependência de objetos ou entidades – monumentos de figuras divinas ou celulares mais novos com mínimas diferenças em relação ao antecessor. Entretanto, todas essas crenças prometem – ou vendem – a esperança de encontrarmos uma sociedade perfeita e utópica, imaculada de pecados e ambições, ou pode ser apenas uma simples tentativa de fé em ganhar um dinheirinho extra em jogos de azar. Dessa maneira, a alegoria hipnótica de uma crença cega furta o bom-senso de seus idólatras, nublando a visão dos fiéis em relação a seu ídolo (essa mesma lógica sobre a fé também é usada na publicidade, como compara Barthes em Mitologias). Portanto, toda crença produz uma alegoria para retratar sua própria perspectiva de realidade, mesmo que seja à custa de sacrifícios, sejam de seus fiéis ou de ideologias, de acordo com Bakhtin no texto Marxismo e filosofia da linguagem.

Como a luz alta do carro atrapalha a visão da estrada com neblina, a promessa dos ídolos funciona da mesma forma: uma luz que deveria iluminar, mas desfoca ainda mais a vista. Com isso, tanto a devoção religiosa quanto a ideológica servem como consolo e guia para seus devotos. Então, precisamos tanto de uma ideologia quanto precisamos de uma crença? Não queremos uma ideologia para viver[3], mesmo que seja para nos curarmos do “ópio”, pois, como ambas são promessas turvas e não a própria realidade, não passam de ídolos mitológicos que sobrevivem de suas promessas. Assim, criamos uma ilusão ao dizermos “não precisamos da tirania de Deus”, mas tornamo-nos escravos de outras realidades, segundo o texto A idolatria política e suas consequências na sociedade, de Thalles Ferreira Bila e Wendell da Costa Bila.

No âmbito político atual, as pessoas se afastaram tanto para as margens que já se perderam na polarização, sem contato com a realidade e diversidade. Portanto, não sabem mais onde fica em cima e onde fica embaixo, muito menos o que são esquerda e direita. Dessa forma, essas dicotomias radicais conseguem apartar as massas da realidade concreta para focá-las apenas na imagem dos mitos penduradas nos cantos das paredes das cidades, nos monumentos das igrejas, nos telefones-celulares e estampados nas testas de cada um.

Então, devemos mesmo ter ídolos? ou deveríamos derrubá-los, criticá-los veementemente nas ruas e duvidar das parábolas de falsos messias? Sempre devemos questionar tudo o que lemos e assistimos, pois acreditar e defender algo ou alguém nunca foram sinônimos de cegueira e omissão. Ainda assim, a idolatria continua presente em nossa rotina, prometendo esperança, porém sempre acompanhada de nossas carências e inseguranças. Com isso, a necessidade – mesmo que esteja na essência do ser humano – de crer em “deuses”, buscar identificação com personagens fictícios ou ser devoto a um mito político não precisa ser, necessariamente, cega.

Notas 

 1 – Desvendando o Fascínio por Personagens Hipermasculinizados (Documentário) Acesso em: 31 out. 2024.

2 – Visão de Karl Marx a respeito da religião demonstrado em A Questão Judaica.

3 – Cazuza – Ideologia (Clipe Oficial) Acesso em: 31 out. 2024

Referências bibliográficas

BARTHES, Roland. Mitologias, 1. Ed. 2001.

MARX, Karl. A questão judaica. 2000

NIETZSCHE, Friedrich. O Crepúsculo dos ídolos. São Paulo: Hemus, 2001

GAIMAN, Neil. Deuses Americanos. Tradução de Leonardo Alves, 1. Ed. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2016

BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: HUCITEC, 2006

FERREIRA BILA, Thales; COSTA BILA, Wendell. A idolatria política e suas consequências na sociedade. Revista Alpha, 2021. 

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João Vicente Custódio Magalhães nasceu em Palmeira das Missões (RS), estuda Jornalismo pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e licenciatura em Letras-Português pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (Unijuí).

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