Em ‘Aqui’, EUA do ‘great again’ estão condenados a repetirem seu presente

here filme

HENRIQUE ARTUNI
(FOLHAPRESS)

Que máquina do tempo é essa que dispensa descargas elétricas descomunais e elementos radioativos? Quatro décadas depois de “De Volta para o Futuro”, Robert Zemeckis ainda é fascinado pelos brinquedos mais sofisticados que o cinema pode incorporar, mas, aos 72, parece reconhecer que esta arte mudou pouco nos últimos 130 anos.

O título pode enganar. “Aqui”, o novo longa do diretor, é tanto sobre um lugar um mesmo ponto no espaço, que a câmera observa sem se mover— quanto é sobre o tempo que entrevemos por recortes na tela, que nos jogam entre o passado e o futuro de uma casa construída em 1900 até os nossos dias e aquilo que havia antes daquela morada.

Entre idas e vindas, porém, tudo se assemelha a um presente contínuo, que o longa metaforiza num beija-flor, que surge em dois pontos-chave da narrativa.

Mas “Aqui” é também sobre uma ideia de país, sobre o que ele pode enterrar e sobre as transformações e obsessões que Zemeckis e diversos parceiros de geração traduziram em Hollywood, vide os “De Volta para o Futuro” e “Forrest Gump”, com seus registros históricos adulterados pela ficção.

É este último que primeiro vem à memória do espectador de “Aqui” ao reencontrar Tom Hanks e Robin Wright, agora rejuvenescidos e envelhecidos com os efeitos de computação e inteligência artificial.

Dessa vez, seus personagens, o casal Richard e Margaret, nada têm de extraordinários, como a maioria das outras figuras da história. São gente da ideologia média americana, que sonha em ganhar dinheiro, ter sua casa, criar os filhos, enfim, que vivem a serviço do futuro “a única direção para onde vamos”, segundo um personagem, mas acorrentados ao presente.

Ao registrar o país que busca, de novo e sempre, o “great again”, Zemeckis vê o lado trágico da existência, capturando a vida privada como reflexo de um presente condenado a se repetir. Como se só uma câmera impassiva pudesse por em perspectiva aquilo que esquecemos, seja pelas limitações do ser humano, pela força da natureza ou por eventos históricos.

Não é à toa que, a horas tantas, estudantes de arqueologia desenterram do quintal da casa um colar indígena que, minutos antes, vimos ser presenteado a uma nativa, naquele mesmo lugar, séculos atrás.

Noutro momento, o personagem de Hanks, que sonhava em ser artista, mostra para a mulher o projeto de uma casa que nunca terão, condenados, após uma gravidez inesperada, a viverem no mesmo canto onde Richard foi criado, junto dos pais.

Só muito depois, após um acúmulo de frustrações, é que este homem, preso a seu passado, poderá retomar sua paixão e lotar a casa de quadros e memórias, mas sem seu amor.

Lugares-comuns como esses respondem sentimentalmente ao que Richard McGuire apresentou de forma conceitual na HQ que o filme adapta. Fosse uma produção europeia, não faltariam tempos mortos. Mas ao roteiro do veterano Eric Roth —de “Forrest Gump” e “O Curioso Caso de Benjamin Button”— importam os traumas da vida íntima. Algumas das melhores sacadas, aliás, já estavam no livro.

Para este Zemeckis maduro, o tempo esteve sempre aqui a nos observar, e suas opções estéticas da vez reforçam essa radicalidade. Se a câmera está parada, é teatro filmado, dirão alguns. Besteira, não seria possível repetir essa encenação fora do cinema já que, além dos atores, toda a cenografia e a profundidade de campo, que vemos pela janela da sala, é parte da narrativa.

O diretor carrega nos efeitos visuais, é o fim do mundo, dirão outros. Para Zemeckis, pelo contrário, a tecnologia abre um novo mundo, nem que sejam para apostas hoje esquisitas como “O Expresso Polar”. É sentimentaloide, apontou parte da crítica nos Estados Unidos, onde o filme também vai mal de público.

Ora, a força emocional caracteriza Zemeckis, um romântico, tanto quanto suas inovações. E, em comparação com a HQ, é isso que torna a narrativa possível, sem deixar de valorizar as pontas soltas da vida. O amargor contamina essa saga americana em nada catártica.

Como quando um soldado chega a cavalo, anunciando a vitória do norte na Guerra de Secessão. “E agora?”, questiona um soldado exausto. Ou quando, já perto da nossa realidade temporal, uma família negra instrui o filho a como agir se for abordado pela polícia, momento em que também percebemos que, até ali, os únicos outros negros da narrativa são os trabalhadores do período colonial.

“O tempo voa”, dizem os personagens. De fato. E não há tecnologia que rejuvenesça Tom Hanks ou Robin Wright de fato. Mesmo com os rostos lisos, suas vozes roucas e gestos limitados são de sexagenários e não escondem as rugas do “american way of life”.

Na visão de “Aqui”, o espaço estará para sempre, mas o que voa diante de nós, mostra Zemeckis, é esse beija-flor que chamamos de agora.

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Avaliação: Muito bom
Quando: Estreia nos cinemas nesta quinta (16)
Classificação: 12 anos
Elenco: Tom Hanks, Robin Wright, Paul Bettany
Produção: Estados Unidos, 2024
Direção: Robert Zemeckis

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