Comunicação, golpes e genocídios: do rádio de Ruanda aos algoritmos do capital

(Foto: Tom/Pixabay)

“Toda história é, em certa medida, uma história de fantasmas: aquilo que se tentou silenciar, mas persiste em falar.”     Eduardo Galeano

Ao longo do século XX – e adentrando este XXI marcado por colapsos múltiplos – a comunicação tem sido mais do que uma arena de disputa: é um dispositivo central na construção de hegemonias, golpes e genocídios. Se a modernidade nos prometeu esclarecimento por meio dos meios de massa, o que testemunhamos foram formas cada vez mais sofisticadas de manipulação, silenciamento, doutrinação e morte. A palavra, antes abrigo, tornou-se arma; a escuta, território colonizado; a imagem, fábrica de consenso.

Ruanda, 1994: o microfone como facão

Em Ruanda, entre abril e julho de 1994, cerca de 800 mil pessoas foram mortas em um genocídio que teve como uma de suas principais armas a Radio Télévision Libre des Mille Collines (RTLM). Era um veículo privado, mas articulado com o poder estatal hutu. Os locutores zombavam dos tutsis, incitavam o ódio étnico, liam listas de nomes ao vivo e davam ordens — veladas ou explícitas — para matar. “Cortem as árvores!” era o chamado. Árvores eram pessoas. O rádio não apenas informava — ele organizava o extermínio.

Num país com baixa taxa de alfabetização e uma forte tradição oral, o rádio era o meio mais penetrante, cotidiano e confiável. Estava nos bares, nas casas, nas feiras, nos vilarejos. Sua linguagem coloquial e envolvente fazia da mensagem algo íntimo, quase doméstico. A RTLM falava como o povo e ao povo, tornando o discurso de ódio parte da rotina. Ali, o microfone era uma metralhadora de ondas. A machete era empunhada, mas guiada pela voz. O caso de Ruanda escancara a potência perversa da comunicação quando capturada por projetos genocidas — e revela como um meio popular pode ser apropriado para instaurar o terror com aparência de normalidade.

Joseph Goebbels: o arquiteto da mentira em massa

Três décadas antes, na Alemanha nazista, Joseph Goebbels já havia elaborado uma sofisticada máquina de propaganda que dominava todos os meios à disposição: rádio, imprensa, cinema, artes visuais. Goebbels compreendia, com frieza instrumental, o poder da repetição, da emoção e da simplificação para manipular massas. “Uma mentira repetida mil vezes torna-se verdade”, dizia.

Sob o regime nazista, o rádio foi popularizado e barateado pelo governo. As mensagens de Hitler ecoavam nas casas, nos cafés, nas praças. As multidões eram formadas por palavras. O ódio era coreografado pela narrativa oficial. A comunicação era vertical, uníssona, esmagadora. Ela não apenas sustentava o regime: ela o constituía.

Walter Benjamin já advertia, em sua célebre análise sobre a reprodutibilidade técnica, que os meios de massa, ao invés de promoverem a emancipação, poderiam servir à estetização da política e à naturalização da guerra: “O fascismo estetiza a política. A resposta do comunismo deve ser a politização da arte.”

Getúlio Vargas e o DIP: a voz do Estado Novo

Inspirado no fascismo europeu, o Estado Novo brasileiro (1937–1945) criou o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), responsável por censurar, controlar e produzir conteúdos para os meios de comunicação. O rádio foi nacionalizado como instrumento de doutrinação. Vargas construiu uma imagem de “pai dos pobres”, cultivada por programas, canções e discursos cuidadosamente roteirizados.

O DIP não apenas calava vozes dissidentes, como também moldava uma memória oficial, um imaginário de país. Era um laboratório de subjetividades. A comunicação estatal varguista produzia consenso por sedução e imposição, ocultando perseguições, torturas e autoritarismos sob a máscara da modernização nacional.

Foucault diria que não há poder sem saber, nem saber que não seja atravessado por relações de poder. O DIP produzia saberes que organizavam a vida — e a morte — dos sujeitos políticos no Brasil do século XX.

Das ondas ao código: algoritmos da dominação

No presente, vivemos uma mutação tecnológica que desloca, mas não rompe, a lógica de controle comunicacional. Plataformas como Facebook, X (antigo Twitter), YouTube e TikTok tornaram-se os novos aparelhos ideológicos do capital. A lógica algorítmica prioriza engajamento, não verdade; polarização, não diálogo; emoção, não razão.

Essa arquitetura de vigilância e manipulação tem sido instrumentalizada por governos autoritários, milícias digitais e grandes corporações. Casos como o genocídio dos rohingyas em Mianmar via Facebook, a ascensão do bolsonarismo no Brasil e a invasão do Capitólio nos EUA mostram como as redes digitais são arenas de guerra híbrida e desinformação em massa.

Achille Mbembe, ao refletir sobre o necropoder, nos ajuda a compreender como o controle da tecnologia e da comunicação está hoje ligado diretamente à produção de mortes em massa — sejam elas físicas ou simbólicas. Os algoritmos, como extensões do poder colonial, decidem quem deve viver, quem deve morrer e quem deve ser silenciado.

Globo

Em 2025, as Organizações Globo completam 100 anos de existência. A televisão, seu principal veículo, faz 60. Poucas empresas de comunicação no mundo mantiveram, por tanto tempo, uma relação tão estreita com os centros de poder político e econômico. Desde o apoio entusiástico ao Golpe de 1964 — omitindo, manipulando e legitimando a repressão — até o silêncio deliberado sobre as Diretas Já em seus momentos iniciais, a Globo operou como parceira estratégica das elites conservadoras. Em 1989, fabricou Collor como o “caçador de marajás” e escondeu o escândalo que o derrubaria. Nas décadas seguintes, seu jornalismo oscilou entre o moralismo seletivo e a defesa dos interesses de mercado.

No ciclo mais recente, protagonizou uma cobertura alucinada da Operação Lava Jato, elevando Sergio Moro à condição de herói nacional e naturalizando os métodos de lawfare — judicialização seletiva da política, ataques à soberania e desmonte de direitos sociais. Ao dar palco privilegiado a promotores, juízes e vazamentos, a emissora foi cúmplice ativa da desestabilização democrática que culminou no impeachment de Dilma Rousseff e na ascensão da extrema direita.

Hoje, sob pressão dos movimentos sociais, feministas, negros, indígenas, LGBTQIA+ e periféricos, a Globo tenta ressignificar sua imagem pública. Veste um verniz progressista: fala de diversidade, inclusão, antirracismo. Mas o faz com o cálculo frio de quem conhece o mercado e sabe que a audiência cobra posicionamento. A diversidade, nesse caso, é estética, mas não estrutural. É agenda, mas não transformação. A Globo continua a mesma: uma máquina de poder, sustentada por privilégios históricos, que se adapta ao clima do tempo apenas para manter seus lucros e sua influência. Um império de vidro com alma de chumbo.

A disputa pela palavra

A comunicação nunca foi neutra. É território de conflito, campo de batalha simbólica. Contra a hegemonia do discurso dominante — estatal, corporativo, colonial — insurgem vozes dissonantes: rádios livres, mídias populares, documentários, podcasts como trincheiras de denúncia. Esses experimentos não apenas informam, mas desorganizam o silêncio imposto, desconstroem as versões oficiais, reencenam a história sob outro ponto de vista.

Comunicar, aqui, é um gesto político. É disputar o sentido, desafiar a norma, reocupar os códigos com a linguagem dos vencidos. Não se trata de idealizar os meios alternativos, mas de reconhecer sua potência como forma de insubordinação estética e ética.

Podemos — e devemos — ir além: criar nossas próprias redes, plataformas abertas e livres, que não apenas furem a bolha, mas recusem a lógica da vigilância e do capital. Tecnologias a serviço do comum, com acesso real, usabilidade inclusiva, autonomia e horizontalidade como princípios fundantes. Comunicação como espaço de reinvenção coletiva — e não mais como arma de dominação.

É preciso lembrar, ainda, que os espaços informacionais não se esgotam nas redes sociais. Estas, muitas vezes colonizadas por dinâmicas hedonistas, individualistas e neoliberais, reforçam o espetáculo da aparência e não a substância da partilha. Nossos territórios comunicacionais precisam ir além do feed e do like — precisam encarnar o corpo a corpo das praças, das assembleias, das rádios comunitárias, dos muros, das rodas de conversa, dos becos e vielas onde ainda pulsa o verbo insurgente.

Epílogo: o que ainda pode a palavra

Nada está garantido. O mesmo microfone que espalha morte pode convocar a vida. A mesma rede que vigia pode ser ocupada. O mesmo algoritmo que segrega pode ser hackeado. Ainda que os grandes meios se esforcem para manter o mundo como está, moldado ao gosto do lucro e do privilégio, seguem emergindo vozes que recusam o silêncio, fissuras por onde escapa o grito, redes subterrâneas de solidariedade que insistem em reinventar a linguagem e o futuro.

A comunicação que queremos não será dada: será construída no conflito. Ela não virá das torres, mas dos barracos, dos quilombolas, dos acampamentos, das aldeias, das escolas ocupadas, dos coletivos periféricos, das assembleias estudantis, das comunidades em luta. Será uma comunicação com cheiro de terra, feita de corpo presente e palavra partilhada, de escuta radical e invenção cotidiana.

Entre o ruído das armas e o ruído dos mercados, ainda pode haver voz. Voz que não negocia com a mentira nem com a indiferença. Voz que se faz ponte, abrigo, afeto e levante. Talvez não saibamos o que virá. Mas sabemos de onde viemos. Que o futuro nos encontre em redes não de controle, mas de cuidado. Em vez de algoritmos da morte, que inventemos linguagens para a vida. Enquanto houver palavra, haverá esperança. E enquanto houver escuta, a história não estará perdida.

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Richardson Pontone é Comunicador social, professor e documentarista. Leciona para os cursos de Comunicação Social – Publicidade e propaganda e jornalismo da Universidade do Estado de Minas Gerais – Unidade Divinópolis.

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