Fernanda Torres, o Dia de Reis, frestas e fraturas da brasilidade

No Dia de Reis, neste nascente 2025, vejo, com gosto, um post da jornalista Aline Midlej: uma foto/colagem de um estandarte de folia com o rosto de Fernanda Torres, celebrando a premiação da atriz no Globo de Ouro por sua atuação em Ainda Estou Aqui, dirigido por Walter Salles. A justaposição de referências (a atriz premiada e os reisados) demonstra como as imagens podem ser políticas e poéticas. Pouco depois, deparo com um vídeo de Fernanda Torres dizendo que sente pena de o mundo não conhecer o Brasil, não saber de Candeia, Machado de Assis, Nelson Rodrigues, Clarice Lispector; poderia ter dito também, das Folias de Reis.O tema da brasilidade tem sua complexidade. Reconhecer a nossa diferença vem de

uma matriz que passa por Gilberto Freyre, Darcy Ribeiro, Antônio Candido, Roberto DaMatta. “Afinal, entre o pobre negro que mora na periferia e o branco rico que mora na cobertura há muito conflito, mas há também o carnaval, a comida, a música popular, o futebol e a família”, escreve DaMatta.  A mensagem é que o futuro será mais dos arranjos relacionais do que dos sistemas de conflitos étnicos, culturais, sociais que dão a pauta na Europa e nos Estados Unidos.

Sabemos o quanto a idealização dessa brasilidade é capaz de escamotear nossas históricas injustiças sociais e a violência constitutiva de nosso processo colonial. Tanto que, por vias reversas, a ideia da brazilianization inspirou pensadores como Michael Lind, para quem a ameaça no século XXI nos Estados Unidos seria uma fragmentação das raças por classes, tal como se dá no Brasil. O crescente domínio de uma oligarquia branca no ocidente neoliberal encontrou na experiência brasileira sua tradução. O filósofo Paulo Arantes denomina essa tendência como fratura brasileira do mundo.

Nos dias de fim de ano, o instigante romance Via Ápia, de Geovani Martins, foi bom companheiro. A história de um grupo de jovens favelados e o impacto da chegada da UPP na favela da Rocinha, num já distante 2012, é o enredo de vidas que pulsam apesar da violência policial. Enquanto lia, pensava no livro de Marcelo Rubens Paiva, Ainda estou aqui, e sua adaptação para o cinema. 

Há um ponto em comum, nos dois casos uma abordagem que não cede à explicitação da violência. O centro é a sensibilidade das pessoas que lidam com as adversidades. Gestos de humanidade, como o do policial morador da favela que abandona a farda ao se ver apontando o fuzil para um menino, em Via Ápia, ou as sutilezas que deram um tom global à atuação de Fernanda Torres, algo que transcende a técnica e depende de um entendimento profundo dos nossos dramas e diferenças.

A construção da personagem Eunice Paiva por Fernanda Torres é um laboratório dessa brasilidade, contraditória e poética, esse jeito relacional de estar no mundo. Parte das memórias literárias de Marcelo Rubens Paiva, da elaboração cuidadosa do roteiro, da ambientação e montagem que retratam a poética cotidiana daqueles anos de chumbo, da vitrola à praia, do tempo do trabalho e da convivência familiar. No vídeo sobre a brasilidade no mundo, Fernanda lembra que somos uma potência de 200 milhões de pessoas, isoladas pela língua portuguesa, mas com sede de nossa própria cultura e total interesse por nós mesmos.

No programa Roda Viva de fim de ano, Marcelo Rubens Paiva foi questionado sobre a ausência dos conflitos de classe na história da família burguesa violentada pela ditadura. O escritor fez ver que a história do filme é de um núcleo familiar, derivando daí também a opção de não mostrar cenas de tortura. Esse modo de conduzir a história também se faz presente no romance Via Ápia. A favela é descrita sem estereótipos, a violência está presente, mas a abordagem prioriza as formas de resistência em vidas comuns, tocadas pela esperança.

O talento de escritor de Marcelo Rubens Paiva também se percebe na entrevista vespertina, no mesmo Dia de Reis, ao Estúdio I, da Globonews. Não há meias palavras sobre a subserviência aos poderes militares no Brasil e sua violência, mas há também referências à forma como sua mãe era capaz de dialogar com os generais. Ele faz lembrar que, como diz Foucault, o discurso não é a mera representação de uma luta, mas aquilo pelo que se luta.

Uma curiosidade: uma das cenas do filme escolhidas pela produção do programa para pontuar a entrevista, mostra uma coletiva de Eunice Paiva e sua reação ao mesmo tempo enfática e delicada sobre a pergunta da repórter se era hora de virar a página. O debate que se seguiu era sobre a necessidade de abrir os arquivos militares, de conhecermos esse passado. Mas há algo que foi silenciado e que o roteiro tocou: o papel da imprensa em virar essas e outras páginas.

Ainda estou aqui é um acontecimento discursivo, transpõe sua natureza de obra audiovisual para se conectar com memórias de brasilidades. Abre frestas que deixam entrar luminosidades. Não apenas para nós mesmos, mas nos fluxos midiáticos globais. Não há romantismo. Há estratégia, profissionalismo, a trajetória de uma atriz que soube explorar as potencialidades da linguagem da televisão, do cinema, da literatura.  Chega à maturidade como força expressiva de toda uma geração, sem esquecer a grande Fernanda Montenegro, que nos acena na paisagem da memória em “Central do Brasil”, ali também uma história em busca de um pai. É um diálogo de mães brasileiras: Eunice Paiva na tradução de Fernandas.

Em Via Ápia, a personagem Dona Marli, perde um dos filhos, executado, como tantos, de forma banal pela polícia. Entre a fratura brasileira no mundo, na imagem de Paulo Arantes, e as frestas de Ainda estou aqui como acontecimento discursivo, o passado se abre como memória do futuro. Marcelo Rubens Paiva reflete, no Roda Viva, sobre como as reformas de base de João Goulart ressurgem na Constituição de 1988, demonstrando que o projeto da ditadura foi também de manutenção de nossas desigualdades. Hoje, essas conquistas estão ameaçadas pela ascensão da extrema direita.

A literatura vinda das periferias, que tem em Via Ápia um de seus grandes momentos, é expressão de quem foi historicamente silenciado e continua a sê-lo, diante da violência policial nefasta, presa às mesmas estruturas que sustentaram a ditadura e planejaram os golpes recentes.  Mas a existência dessa literatura é capaz de iluminar os becos escuros onde esconde a violência.

Na mesma Globonews, alguém fala do bom gosto nas roupas de Fernanda. Penso que a elegância tem mais a ver com a postura consciente de seu papel. Um inglês falado com ritmo brasileiro, o entendimento de que o palco não é só dela, mas a vontade de ser porta voz de tanta coisa que dá dó o mundo não conhecer.  Ela se veste para a premiação com a ginga de onde vem.

No capítulo final de Via Ápia, Geovani Martins descreve uma festa na favela, depois da UPP ir embora, “era a vida – sempre ela e nunca a morte – o que fazia o chão tremer”, escreve.  Os reisados se espalham pelo nosso território continental, saudando a estrela guia, o Globo de Ouro e todas os esforços para tornar nossa sociedade mais inclusiva. Entre as frestas e as fraturas, vamos reencontrando caminhos que já trilhamos e que voltam a fazer sentido no presente. É preciso aproveitar a onda.

 

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Pedro Varoni é Jornalista, Professor do Departamento de Letras e do Programa de Pós-Graduação em Linguística da UFSCar. Pesquisa temas relacionados ao arquivo de Brasilidade.

 

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