Um conto de duas cidades: Brasília e Washington

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Como no clássico de Charles Dickens, que discorreu sobre Londres e Paris ao tempo da Revolução Francesa, pode ser interessante traçar paralelos, buscar semelhanças e diferenças, observando a maneira como Brasília e Washington recordam o que viveram, respectivamente, em 6 de janeiro de 2021 e em 8 de janeiro de 2023.

Ainda evocando o grande escritor inglês, não seria descabido especular sobre o que, afinal, aqueles episódios refletiam: “Foi o melhor dos tempos, foi o pior dos tempos, foi a era da sabedoria, foi a era da tolice (…), foi a primavera da esperança, foi o inverno do desespero (…)” — na obra citada, se mostrava o contraste entre prosperidade e caos naquelas duas capitais.

De volta ao presente, a verdade é que ambas as datas deixaram marcas profundas e lições preocupantes quanto à saúde da democracia, tanto no Brasil quanto nos EUA. Nos dois casos, o estopim que desencadeou os violentos acontecimentos foi a inconformidade com os resultados eleitorais e, concretamente, com a alternância do poder, uma das características definidoras do sistema democrático.

Também é fato que os dois episódios foram suplantados pela resiliência das instituições, que acionaram seus respectivos mecanismos de defesa das regras e de penalização dos atentados à democracia. Em ambos os cenários, superada a tentativa de ruptura, foi possível concluir-se o ciclo de substituição no comando político do Estado.

Como o fluxo de tempo é implacável, os círculos se vão fechando e, já neste 6 de janeiro de 2025, uma nova solenidade de certificação dos resultados eleitorais norte-americanos transcorreu dentro da mais absoluta rotina institucional – com o irônico detalhe de que a cerimônia foi conduzida pela vice-presidente Kamala Harris, em sua função também de presidente do Senado dos EUA.

Por sua vez, Brasília organizou uma cerimônia no Palácio do Planalto para lembrar o 8 de janeiro, ocasião em que foram reincorporadas ao acervo público, agora devidamente restauradas, obras de arte e outras peças históricas destruídas pelos vândalos de dois anos atrás.

As diferenças, porém, são notáveis. No Brasil, inelegibilidades, prisões e os rigores da lei foram aplicados com celeridade e contundência incomuns. Nos Estados Unidos, Donald Trump, prestes a reassumir a presidência, promete anistiar quase 800 condenados pelos atos de 6 de janeiro. O Judiciário americano, ágil com os pequenos, hesitou em responsabilizar os grandes, apoiando-se na tradição de delegar ao eleitor a decisão final. Noves-fora as peculiaridades de cada sistema, fica a questão: teria a Suprema Corte dos EUA mantido a mesma imperturbabilidade se tivesse sido alvo da fúria, como sucedeu no STF?

Que os eventos quase simultâneos, em Washington e em Brasília, realmente traduzam a “primavera da esperança”, encerrando o “inverno do desespero” que nutre o radicalismo e a polarização, a intolerância e a espiral de violência que são a própria negação da democracia. O presente e o futuro, no entanto, pedem vigilância e valorização das instituições permanentes.

João Marcelo Chiabai da Fonseca, advogado, consultor e mestre em Políticas Públicas pela Escola de Estudos Internacionais Avançados (SAIS) da Universidade Johns Hopkins

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