Milei enxuga política de memória na Argentina

MAYARA PAIXÃO
BUENOS AIRES, ARGENTINA (FOLHAPRESS)

Um terreno de 17 hectares em uma das principais artérias de Buenos Aires, a avenida Libertador, incomoda o governo de Javier Milei. Ali está a ex-Esma (Escola de Mecânica da Armada), o principal centro clandestino de tortura da ditadura depois transformado em um complexo de museus e institutos de memória e direitos humanos.

O amplo espaço virou Patrimônio Cultural da Humanidade em 2023. Agora é o principal símbolo do enxugamento da política de memória de Estado na Argentina, outrora reverenciada em vizinhos como o Brasil, em dívida com as políticas de reparação.

A política mileísta de demissões de funcionários públicos, para enxugar uma máquina estatal reconhecidamente inchada, chegou com mais força a órgãos ligados aos direitos humanos nas últimas semanas de dezembro. Muitos desses desligamentos foram na ex-Esma.

Segundo contabilizam os funcionários do local, 36 dos 103 trabalhadores do Arquivo Nacional de Memória, ali localizado, foram demitidos. Outros 16 ainda não tiveram seus contratos renovados.

O espaço fundado em 2003 preserva documentos sobre violações de direitos humanos e tem pelo menos 5 quilômetros (contados em linha reta) de papéis ligados à ditadura (1976-1983).

No Centro Cultural Haroldo Conti, também membro da Esma e cujo nome homenageia um dos desaparecidos da ditadura, a redução foi maior: foram demitidos 45 trabalhadores de um quadro de 87.

Alguns já haviam sido dispensados em meados do ano, mas por ações judiciais conseguiram voltar a seus postos. O local é grande e é usado para difusão cultural: exposições, apresentações de obras e shows.

Mas os trabalhadores, muitos deles ligados a centrais sindicais que estão em rota de colisão com Milei, bateram o bumbo com maior intensidade na última semana, quando uma mensagem em nome da Secretaria de Direitos Humanos chegou a seus celulares: a partir de 2 de janeiro, não venham mais, até nova ordem, dizia.

O parágrafo único afirmava que o Centro Conti passará por uma “reestruturação interna”. Para os funcionários isso é uma mensagem que antecipa o fim de seu funcionamento. O governo não deu detalhes.

Desde que assumiu a gestão da Casa Rosada, Milei não anunciou o início ou a continuidade de projetos de política de memória mais de 40 anos após o fim da ditadura. Pelo contrário, diz que é preciso revisitar o que ocorreu no período e promover uma “memória completa”.

É uma referência à violência cometida por grupos guerrilheiros, que também deixou mortos, mas em número inquestionavelmente menor do que o terrorismo do Estado: calcula-se que sejam mil os mortos por esses grupos, ante mais de 8.600 mortos e desaparecidos pelas mãos do regime militar -a cifra é subnotificada.

A ausência de uma política de memória frustra militantes, políticos e cidadãos da esquerda à centro-direita no país. Já o enxugamento operacional desses órgãos, nem tanto.

Falando reservadamente à reportagem, ex-funcionários de alto escalão e militares da área dizem que o kirchnerismo, a força política de Cristina Kirchner e de seu ex-marido e presidente, Néstor, havia se apropriado das políticas de direitos humanos e inflado esse institutos com pessoal alinhado ao peronismo.

Nas palavras de um ex-diretor da Secretaria de Direitos Humanos durante o governo de Mauricio Macri (2015-19), gestão de direita, o kirchnerismo utilizou o tema de direitos humanos para fazer política partidária disfarçada de política de Estado, e muitos órgãos, como o Centro Cultural Conti, eram ideologizados e com um número de funcionários não condizente com suas atividades.

Também sob reserva, uma renomada organização independente de direitos humanos que trabalha com temas de democracia e autocracias relata que uma ideia sua de promover no local a apresentação de uma banda de punk rock de Cuba, opositora ao regime comunista e que estava de visita ao país, foi descartada porque, na visão do centro, desagradaria aos funcionários um evento crítico à ditadura cubana.

O governo ultraliberal não fechou a Secretaria de Direitos Humanos, como o fez, por exemplo, com o Ministério das Mulheres, porém tampouco indicou o que pretende fazer com esse braço do Estado.

Recentemente, outro instituto baseado na ex-Esma virou alvo. Como a Folha de S.Paulo revelou, a Argentina parou de financiar e tenta retirar dali o Instituto de Políticas Públicas e Direitos Humanos do Mercosul, mais um tema de confronto com o a diplomacia do Brasil, que se opõe.

Tudo o que envolve esse espaço é sensível. A Esma é o maior símbolo da ditadura na Argentina. Está presente em filmes, peças de teatro e livros, como em um dos que mais foi debatido no país em 2024 -“A chamada” (La llamada), da jornalista e Leila Guerriero, uma biografia de Silvia Labayru, presa política dos militares obrigada a ter sua filha nas repartições da Escola de Mecânica da Armada.

Calcula-se que mais de 5.000 presos políticos tenham passado pela Esma, mas apenas 200 sobreviveram.

A maior parte morreu nos chamados “voos da morte”, nos quais os militares os lançavam ao rio.

No último sábado (3), o local foi palco de um ato cheio, com milhares de pessoas, contra o fechamento dos espaços e as demissões. Havia bandeiras de sindicatos, feirinha de artesanato, grupos de dança. Dias antes outro evento simbólico ocorreu ali: a organização Avós da Praça de Maio anunciou ter encontrado mais uma criança retirada dos braços de seus pais, desaparecidos políticos do regime. Elas calculam que ainda haja outros 300 por encontrar.

Javier Milei está no melhor momento de seu governo. Com indicadores econômicos favoráveis, projeções de que a pobreza pode diminuir e aprovação de metade dos argentinos, a gestão indica que pode colocar em prática, com ainda menos diálogo, a sua agenda política.

Os órgãos de direitos humanos, a maioria dos quais desde o primeiro dia deste do governo estão sem chefia -como o Arquivo de Memória-, perguntam-se qual é o seu futuro.

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