Mulheres são comparadas como cavalos de corrida, diz Cher, que lança autobiografia

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SILAS MARTI E PEDRO MARTINS
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS)

Cher diz que não é uma diva, alcunha que rechaça como “uma idiotice”. Mas, diva que é, não tolera ser contrariada. Com sua assistente, ela interrompeu e ameaçou encerrar esta entrevista sem pudor, ao ser questionada sobre as artistas que cresceram sob a influência de sua carreira, que já dura seis décadas.

Seu maior incômodo foi com uma menção a Madonna, que veio uma década depois e, junto a ela, formatou o conceito das divas da música pop e moldou a trajetória de todas as estrelas que hoje estão no topo, dividindo seus trabalhos por fases, demarcadas por visuais e cabelos impactantes, sumiços e retornos triunfais.

No entanto, ainda que com poucas palavras, Cher deu um panorama do que pensa sobre o mundo que ela, com 78 anos, viu se transformar desde o fim dos anos 1940. Falou do retorno de Donald Trump à Casa Branca, da influência dos artistas na política, do retrocesso dos direitos reprodutivos das mulheres em curso -isto é, tudo aquilo que a faz pensar em deixar os Estados Unidos- e ainda do avanço da inteligência artificial.

Essa tecnologia, que já usaram para reproduzir sua voz em músicas que nunca cantou e em falas que nunca saíram de sua boca, como um falso apoio a Trump nas eleições americanas, não pode ser comparada com o Auto-Tune que ela própria inaugurou na indústria da música ao cantar, com uma voz muito mais grave do que a sua, se era possível acreditar na “vida depois do amor”.

“É uma ferramenta que melhora sua voz, mas não cria sua voz do zero”, afirmou, por telefone, de sua casa em Malibu, no estado americano da Califórnia, às vésperas do Natal. “Eu trabalhei por décadas em prol da minha voz, do meu canto, da minha aparência, então me parece inadequado, da pior maneira possível, tirar de mim tudo o que lutei para criar.”

Cher acaba de lançar uma autobiografia, que ainda terá uma segunda parte e depois será transformada num filme. É tempo, portanto, de revisitar também sua vida pessoal, da infância cheia de pobreza e violência às margens de uma Los Angeles reluzente na era de ouro de Hollywood, até a relação turbulenta com Sonny Bono -este que ameaçou sua crença no amor, após um casamento de pouco mais de uma década, e com quem se alçou ao estrelato no programa “Sonny & Cher”, exibido na TV americana na década de 1960.

No rastro de um musical na Broadway sobre sua vida e agora com seu livro, o filme em planejamento e um álbum de Natal recém-lançado, Cher hoje vive um momento que lembra seu auge, na virada do século, quando ressurgiu com “Believe” após um período de reclusão. Mas agora ela faz um aviso -não tem nenhum plano de se afastar dos holofotes e planeja até um show no Brasil, onde nunca se apresentou.

“Todas as mulheres se preocupam com sua aparência, e o envelhecimento impacta sua autoestima. Mas eu me sinto ótima e acredito que estou envelhecendo muito bem. Enquanto conseguir trabalhar, estarei ótima. E tenho trabalhado muito nos últimos anos. O envelhecimento ainda não me impediu de fazer nada do que amo.”

Você nunca se apresentou no Brasil, e temos visto shows gigantes de artistas como Madonna na praia de Copacabana. Você gostaria de se apresentar no Brasil?
Cher – Claro que gostaria.
Folha – Quando?
Cher – É o que temos discutido. Já me convidaram, na verdade. Mas pode deixar que vocês serão os primeiros a saberem.
Folha – Seu livro mostra as dificuldades e os abusos que você enfrentou quando era criança. O que a fez sentir que agora era a hora certa de contar tudo isso?
Cher – Não existe hora certa. Esta foi a hora que eu escolhi. Poderia ter contado antes, mas quis fazer isso agora.

Folha – No livro, você diz que poderia nunca ter nascido, porque sua mãe pensou em desistir da gravidez. À luz dessa experiência, que agora tornou pública, o que você pensa sobre o aborto?
Cher – A escolha é da mulher. O corpo é dela, e ela tem de estar preparada para cuidar da criança. São muitas decisões, mas todas precisam ser tomadas pela mulher. Não é só ter a criança, mas criar essa criança -uma tarefa que nunca termina para uma mãe.
Folha – E o que pensa sobre o retrocesso dos direitos reprodutivos em curso nos Estados Unidos?
Cher – Estamos numa direção horrível, e só piora.
Folha – Muitos artistas se juntaram a Kamala Harris na última eleição americana, inclusive você, mas, mesmo com todo esse apoio, ela perdeu. Será que os artistas não têm tanta influência assim na política?
Cher – Temos uma influência pequena, se considerarmos a quantidade de eleitores. Mas o que os candidatos dizem na campanha não é o que fazem quando vencem, e muitos americanos já estão surpresos com o que está acontecendo, que é diferente do que tinha sido prometido.
Folha – Surpresos com o que Donald Trump já disse que vai fazer?
Cher – Sim. Ele disse, por exemplo, que baixaria o preço dos alimentos assim que fosse eleito, mas agora voltou atrás e afirmou que isso é muito difícil de fazer.
Folha – Você disse que estava pensando em deixar os Estados Unidos caso Trump fosse reeleito. Ainda tem esse plano? Para onde iria?
Cher – Depende do quão ruim a situação vai ficar. Quando e se esse momento chegar, todo mundo ficará sabendo, então isso não faz nenhuma diferença agora.
Folha – De volta ao livro, você conta que sua mãe enfrentou muito a cultura do teste de sofá em Hollywood. Você passou por situações semelhantes?
Cher – Graças a Deus, nunca tive de lidar com isso, talvez porque sou famosa desde que tenho 17 anos. Mas faria o mesmo que minha mãe fez -recusaria tudo.*
Folha Como foi crescer em meio a tanta fama desde a adolescência?*
Cher – Esta é minha única vida, desde sempre. Não conheço outra vida. É meu trabalho, e eu sou boa nele.
Folha – E como é envelhecer sob os holofotes?
Cher – Todas as mulheres se preocupam com sua aparência, e o envelhecimento impacta a autoestima. Mas eu me sinto ótima e acredito que estou envelhecendo muito bem. Não posso ter 20 anos para sempre, nem os 52 que tinha quando lancei ‘Believe’. Enquanto conseguir trabalhar, estarei ótima. E tenho trabalhado muito nos últimos anos -voltei a cantar, lancei um álbum de Natal. O envelhecimento ainda não me impediu de fazer nada do que amo.
Folha – Outro assunto do livro é sua relação conturbada com Sonny Bono. Como você superou os episódios de abuso que sofreu?
Cher – Talvez não devêssemos ter sido marido e mulher por todo aquele tempo, mas éramos também irmão e irmã, pai e filha. Tínhamos muitas relações dentro desse casamento. Mesmo depois que o deixei, sempre fomos amigos. Os problemas eram todos dele.
Folha – Você menciona que pediu conselhos para Lucille Ball, um ícone feminista e uma das maiores atrizes dos Estados Unidos. Como era a relação de vocês?
Cher – Eu a conheço desde que era criança, porque minha mãe trabalhava com ela. E ela era a única pessoa que já tinha passado pelo mesmo que eu. Nenhuma mulher trabalhou por tanto tempo na televisão com o marido e depois teve a coragem de pedir um divorcio, exceto Lucille. E ela ainda trabalhou com o ex-marido depois.
Folha – Na época, Lucille Ball disse que você era quem realmente tinha talento no casal, não ele. Você concorda que Sonny não tinha talento?
Cher – Não precisei concordar. Não sabia o que Sonny faria após o divórcio. Ele certamente era talentoso, mas parece que seu talento não funcionou depois que nos divorciamos. Ele virou um engravatado qualquer na política.
Folha – No show business, as mulheres são sempre comparadas umas às outras. Como você lida com isso?
Cher – Não são só as mulheres. Cavalos de corrida são comparados uns aos outros, boxeadores são comparados, times de futebol são comparados. Mas a verdade é que, de todas as mulheres que conheço na indústria do entretenimento, nenhuma pode ser comparada, porque somos muito diferentes.
Folha – Nos Estados Unidos, existe uma tradição forte das divas. O que acha desse termo?
Cher – Não me importo muito com ele. Acho uma idiotice, na verdade. Nunca pensei em nenhuma de nós como divas. Mas tem gente muito importante, sim. Tina Turner era uma excelente artista. Era como nenhuma outra, um ícone.
Folha – Vocês eram amigas, né? E ela teve um casamento parecido com o seu.
Cher – Éramos amigas próximas. Sonny nunca pôs a mão em mim, graças a Deus, mas sei que Tina enfrentou esse problema durante todo o seu casamento.
Folha – Você tentou ajudar?
Cher – Uma vez, ela me perguntou o que eu achava, o que tinha feito. Respondi que simplesmente o abandonei. Levou um tempo, mas chegou um dia em que simplesmente fui embora.
Folha – Deve ter sido uma decisão difícil.
Cher – Foi a decisão mais difícil da minha vida. Vivi com ele por muito tempo. Sempre pensei em ir embora, mas nunca achei que fosse capaz. Até o dia em que fui embora.
Folha – Depois de um tempo sumida, após seu divórcio, você fez um retorno triunfal com ‘Believe’. Além de ter sido um momento importante para sua carreira, marcou o início do uso do Auto-Tune, aquela ferramenta que corrige imperfeições na voz, na indústria da música.
Cher – Nem se chamava Auto-Tune na época. Era só uma ferramenta que ajudava os cantores quando eles não conseguiam atingir uma nota corretamente. Depois se tornou o que todos usam hoje.
Folha – De certa forma, dá para traçar um paralelo entre o Auto-Tune e a inteligência artificial, que também faz música. Como você avalia essa ferramenta?
Cher – Ouvi dizer que tentaram copiar minha voz. Tenho certeza de que, daqui a algum tempo, conseguirão fazer isso direito, mas essa tentativa não ficou boa. Não fizemos “Believe” com inteligência artificial. É uma ferramenta que melhora sua voz, mas não cria nada do zero. Foi um marco na história da música. A maioria das músicas tem Auto-Tune hoje.
Folha – Você acredita que o ser humano pode perder esse posto de criador da arte?
Cher – Eu realmente não sei. Acho que pode acontecer, mas quem vai subir no palco e fazer uma turnê? Os integrantes do Abba conseguiram fazer clones deles próprios para pôr hologramas nos palcos. Não sei se usaram inteligência artificial, mas tudo saiu da realidade, dos seus corpos.
Folha – Muitos artistas já disseram que não querem ser transformados em hologramas. E você?
Cher – Um holograma poderia ser divertido, mas isso infringe tudo o que um artista representa. Eu trabalhei por décadas em prol da minha voz, do meu canto, da minha aparência, então me parece inadequado, da pior maneira possível, tirar de mim tudo o que lutei para criar.
Folha – No rastro do seu livro, haverá um filme sobre sua vida. Em que estágio está a produção?
Cher – O filme vai ser baseado na autobiografia, que ainda não terminei de escrever, porque haverá uma segunda parte, um outro livro. Mas vai ser um trabalho difícil. Sempre é difícil interpretar alguém que canta, dança, se apresenta. Não que não existam bons atores. Eles podem inclusive ser bons cantores, bons dançarinos, mas isso não significa que vão conseguir ser como eu.
Folha – Você já escolheu a atriz que vai fazer o seu papel?
Cher – Não. A gente nem tem um roteiro ainda. Vai demorar bastante tempo. Vou ser produtora do filme.
Folha Você estará no controle, então?
Cher – Eu serei uma das pessoas no controle.
*Folha – Por falar em cinema, como você, que cresceu na chamada era de ouro de Hollywood, vê a crise atual?
Cher – Qual crise?*
Folha – De bilheteria e de criatividade, com tantos remakes.
Cher – Então é desonesto gostar muito de um filme e tentar fazer uma continuação ou outra versão dele. Não vejo nada de errado nisso. Por exemplo, eu gosto do primeiro “Bad Boys” e não gosto do segundo, mas ainda assim quis assistir ao terceiro, só para ver se fariam um bom trabalho -e fizeram.
Folha – Há rumores de que você pagou para que sequestrassem seu filho e o tirassem da ex-mulher. É verdade?
Cher – Não posso falar sobre isso, porque o caso foi finalizado na Justiça. Meu filho está no quarto dele agora.

Cher: A Autobiografia (Parte Um)
Preço: R$ 89,90 (400 págs.); R$ 44,90 (ebook)
Autoria: Cher
Editora: Harper Collins
Tradução: Isabella Pacheco

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