Yanomami que perdeu parte da cabeça em ataque de onça foi dado como morto em comunidade antes de milagre reconhecido pelo papa


Quase 30 anos depois do ataque, Papa Francisco reconheceu milagre atribuído ao padre italiano José Allamano, que tratou indígena. Sorino Yanomami perdeu parte do cérebro e, mesmo desiludido por médicos, se recuperou sem sequelas, e vive até hoje em sua comunidade. Missionária Maria da Silva, de 77 anos, segura foto com indígena Yanomami atacado por onça, que resultou na canonização do padre José Allamano
Caíque Rodrigues/g1 RR
Atacado por uma onça em 1996, o indígena Sorino Yanomami sobreviveu após ser cuidado por missionárias, que pediram sua recuperação em orações ao padre José Allamano — agora canonizado pelo Papa Francisco. Em entrevista ao g1, na terça-feira (22), uma das religiosas que cuidou do indígena disse que ele foi dado como morto pela comunidade antes do milagre.
“Os pajés começaram a fazer seus rituais fúnebres. Eles não queriam que ele fosse levado para ser atendido na cidade, pois queriam que ele morresse na floresta. Já era dado como morto”, relembrou a missionária Maria da Silva, de 77 anos, que ajudou o indígena após o ataque.
📿 Allamano nasceu em 21 de janeiro de 1851 em Castelnuovo D’Asti, Itália e morreu em fevereiro de 1926. Embora nunca tenha pisado em Roraima, o milagre foi atribuído a José Allamano por conta das preces das missionárias da Consolata — congregação fundada por ele que socorreu o indígena e o transportou para o hospital em Boa Vista.
Maria da Silva estava em Boa Vista e foi responsável por receber e acompanhar Sorino no hospital depois do ataque na comunidade Catrimani, onde ele vive até hoje, sem sequelas. À época, o indígena tinha cerca de 40 anos. Ele foi enviado à capital por outras missionárias que estavam no território e chegaram a ser ameaçadas para que não o retirassem do local.
“Sorino segurou a mão da irmã Felicita enquanto os pajés faziam os rituais fúnebres e ela sentiu que ele tinha forças e não queria morrer. Mesmo com as ameaças, ele foi levado para Boa Vista, pois a irmã sabia que ele iria ser tocado por um milagre”.
No ritual fúnebre, Sorino já era dado como morto. Por isso, os indígenas iniciaram o processo de luto conhecido como Reahu, seguindo da tradição de que a “passagem deve ser feita dentro da floresta” se não o “espírito não encontra descanso”.
O milagre da recuperação de Sorino
Desacreditado pela equipe médica, Sorino sobreviveu após ser cuidado pelas missionárias da Consolata, congregação fundada pelo então padre José Allamano.
Durante todo o processo — que começou no ataque da onça e durou três meses até o retorno de Sorino à comunidade — as missionárias, incluindo a irmã Maria, oravam e pediam para Allamano que intercedesse pela cura do indígena acreditando que o milagre seria possível.
Sorino foi atacado pela onça no dia 7 de fevereiro de 1996 — data que coincidiu com o início da novena dedicada a Allamano — pratica católica que consiste em rezar uma série de orações durante nove dias. Para Maria, o milagre começou logo após o ataque, já que Sorino não desmaiou mesmo com parte do cérebro arrancado e teve forças para afugentar a onça.
“Tudo o que vivi nesse milagre é motivo de profunda gratidão. Mesmo com todos dizendo que ele iria morrer, eu sentia uma certeza profunda de que ele sobreviveria. Foi uma experiência de fé muito intensa. Eu rezava todos os dias pedindo pela cura. Quando as pessoas diziam que ele não tinha chance, eu respondia com convicção: ‘Ele não vai morrer!'”, relembrou a missionária em entrevista ao g1.
Sorino, hoje com cerca de 68 anos (o povo Yanomami não costuma contar idades e anos), vive sem sequelas. No mesmo dia da canonização de Allamano, ele foi presenteado com uma imagem do, agora santo, que operou um milagre oficial para salvar sua vida.
Sorino Yanomami recebe imagem de José Allamano neste domingo (20), dia em que o padre foi canonizado
Arquivo Pessoal/Maria da Silva
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Indígena caçava quando foi atacado por onça com filhotes
Em entrevista ao g1, a missionária portuguesa, que vive há 44 anos em Roraima atendendo o povo Yanomami, disse nunca ter presenciado algo tão “forte” quanto o que viveu com Sorino. Para ela, o episódio foi “um dos momentos mais marcantes” que viveu.
“O milagre começou naquele primeiro dia, quando ele não desmaiou após o ataque da onça. Meses antes, outro indígena foi atacado e não teve a mesma sorte. Desmaiou, e a onça acabou matando ele. Se Sorino tivesse perdido a consciência, ele não teria sobrevivido e não teria forças pra pedir socorro”, relembra.
No dia, Sorino caçava na floresta quando se deparou com uma onça que estava com filhotes. O ataque aconteceu por trás, arrancou o couro cabeludo e abriu o crânio do indígena expondo “grande parte do cérebro”, segundo testemunhas.
O grupo de caçadores Yanomami tentou socorrê-lo e, devido à gravidade dos ferimentos, pediu ajuda às religiosas que viviam nas proximidades. Sorino foi socorrido pela enfermeira Felicita Muthoni, que é queniana, integrante da congregação de Missionários da Consolata e estava na Terra Yanomami em missão.
Missionária Maria da Silva, de 77 anos, segura a imagem do agora santo José Allmano
Caíque Rodrigues/g1 RR
Felicita notou que Sorino estava com parte da massa cerebral fora da cabeça — desprendida do restante. Ela chegou a lavar a parte que estava para fora e empurrou para dentro da cabeça novamente e enrolou com uma camisa.
Após os primeiros socorros, as enfermeiras ligaram solicitando ajuda e pedindo para levar o indígena ao hospital em Boa Vista, mas a Terra Yanomami é um local que só pode ser acessado de avião. A aeronave foi enviada na tarde daquele dia, e Maria o recebeu na capital.
No Hospital Geral de Roraima, a cirurgia durou cerca de quatro horas, e ele ficou na Unidade de Tratamento Intensivo (UTI). As irmãs se revezavam para cuidar dele. Durante o dia, uma delas o acompanhava, e, à noite, Maria assumia.
Sorino se alimentava por sonda e, sempre que podia, tentava arrancá-la. Por isso, as irmãs precisaram amarrá-lo para evitar que se machucasse ainda mais.
“Lembro que um dia, ao chegar ao hospital, o mau cheiro da cabeça dele era insuportável. A enfermeira precisou fazer uma limpeza profunda nas feridas. Eu me sentia impotente, vendo tanto sofrimento, mas continuava rezando pela cura dele. Coloquei uma medalha do nosso fundador [Allamano] debaixo do colchão e intensifiquei minhas orações”.
“Os médicos estavam certos de que ele ia morrer e diziam que não havia esperança, mas eu sentia, no fundo do coração, que ele iria sobreviver”, relembra a missionária portuguesa.
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‘Sentia uma força interior muito grande para continuar’
As missionárias, em uma corrente de preces, oravam e pediam que Sorino se recuperasse. Diante disso, elas foram desacreditadas por quem via os esforços para ajudar o indígena. “Todos diziam que ele iria morrer. A cada momento alguém repetia: ‘Ele não vai sobreviver, ele vai morrer’. Inclusive um senhor que visitou o hospital se aproximou e falou: ‘Irmã, o índio vai morrer, não tem jeito'”.
“Também houve um comentário de que cuidar dele não era responsabilidade nossa, mas sim da Funai [Fundação Nacional dos Povos Indígenas]. Eu não sei o que queriam de nós, que ficássemos de braços cruzados diante disso? Apesar de tudo isso, sentia uma força interior muito grande para continuar e seguir em frente, com a certeza de que o milagre já estava acontecendo”, relembra a missionária.
No dia 8 de maio de 1996, três meses depois do ataque, Sorino voltou para Catrimani são e salvo. Ele vive sem sequelas na comunidade Catrimani.
“Foi impressionante vê-lo de pé, falando, andando, enxergando. Os médicos haviam dito que ele não voltaria a falar, nem enxergar, e muito menos andar. Mas ele retornou à sua comunidade, saudável. A alegria do povo e da nossa equipe missionária foi imensa”.
Reencontro com Sorino
Sorino Yanomami com missionários católicos no território Yanomami
Divulgação/Diocese de Roraima
Maria ainda faz missões na Terra Yanomami e encontra com Sorino sempre que possível. Ela reencontrou com o indígena, agora com cerca de 68 anos, em fevereiro deste ano, 28 anos após o acidente com a onça.
“Quando o reencontrei, muitos anos depois, ele estava bem, vivendo sua vida na comunidade. Sorino não fala muito, mas sorri e demonstra gratidão. Certa vez, ele fez questão de mostrar aos outros Yanomami onde havia sido ferido, apontando para a cabeça enquanto contava o que aconteceu e apontando para a imagem de Allamano”.
Sorino Yanomami e Maria Silva, missionária católica, na comunidade Catrimani na Terra Yanomami em 2024
Divulgação/Diocese de Roraima
Para o médico neurocirurgião Mario Santacruz, que atendeu Sorino, não há explicação científica para esta recuperação do indígena, pois considerando a perda da substância cerebral, “ele teria um déficit muito grande com danos motores, paralisia e problemas intelectuais”.
“Até hoje, me sinto profundamente grata por ter testemunhado esse milagre. Não foi obra nossa, mas sim de Deus. Ele nos escolheu naquele momento para sermos parte dessa história, e isso me deixa com o coração cheio de gratidão”, finalizou a missionária.
Canonização de José Allamano
Imagem do padre José Allamano, canonizado pela igreja católica
Divulgação/Diocese de Roraima
O papa Francisco proclamou 14 novos santos no último domingo (20), durante a Missa na Praça de São Pedro. Entre eles, está o italiano José Allamano. Nascido em 21 de janeiro de 1851 em Castelnuovo D’Asti, Itália, foi um notável sacerdote católico que dedicou a vida ao serviço religioso e à expansão do trabalho missionário.
Allamano era reconhecido pelo trabalho missionário e fundou o Instituto Missões Consolata dos padres e irmãos em 1900, seguido pelo Instituto das Irmãs Missionárias da Consolata em 1910. Essas iniciativas expandiram o trabalho para várias regiões africanas e outros países ao redor do mundo — como o território Yanomami. Allamano morreu em fevereiro de 1926.
Na apresentação da canonização de José Allamano no sábado (19), na sala de imprensa do Vaticano, também estava presente Júlio Ye’kwana, presidente da Associação Wanasseduume Ye’kwana (Seduunme) e líder indígena do território Yanomami em Roraima.
Missão na Terra Yanomami
Pista de pouso clandestina feita por garimpeiros em terra indígena Yanomami
Reprodução/TV Globo
A Missão Catrimani com os missionários de Consolata na Terra Yanomami, que leva o nome do rio brasileiro ao oeste do estado de Roraima, foi criada pelo Concílio Vaticano II durante a década de 1960.
O bispo de Roraima e presidente da rede Eclesial Pan-Amazônica, dom Evaristo Spengler — que está em Roma para acompanhar a canonização de Allamano — destacou a importância da missão na crise sanitária vivida pelos Yanomami causada pela invasão do garimpo ilegal.
“Especificamente na Terra Yanomami, a missão não é de anúncio explícito do evangelho. Foi criada para o diálogo, valorização da cultura e do respeito à forma religiosa que o povo indígena vive, sem fazer proselitismo”, afirmou.
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