Acervo prestigiado do Teatro Bela Vista é digitalizado e disponibilizado ao público

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HUMBERTO TOZZE
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS)

Boa parte do legado teatral brasileiro ainda está registrada em folhas de papel -algumas perdidas, outras conservadas com cuidado.

Recentemente, o acervo do Teatro Bela Vista, atual Teatro Sérgio Cardoso, foi digitalizado e está disponível ao público no banco de dados no Amabile, o Arquivo da Memória Artística Brasileira, da Unifesp. O acervo inclui fotografias, textos dramáticos, programas de peças, registros de ensaios, croquis de figurinos e cenários.

Foi nesse cenário do Bela Vista que o musical “Hair” foi apresentado em São Paulo, ecoando as vozes da contracultura em plena ditadura militar, assim como a peça “Vestido de Noiva”, de Nelson Rodrigues, em 1958. O Acervo Nydia Licia e Sérgio Cardoso, preservado por Sylvia Cardoso Leão, filha dos atores, tem mais de 1.200 itens.

Sérgio Cardoso, um dos mais renomados atores brasileiros, fundou o Teatro Bela Vista com Nydia Licia, sua esposa, em São Paulo. Os dois se conheceram em 1949, durante os ensaios da peça “Entre Quatro Paredes”, do TBC, o Teatro Brasileiro de Comédia.

“Eles foram arrojados ao buscar expressar suas visões pessoais. Sérgio tinha uma ideia clara sobre o que queria para o teatro”, afirma Elizabeth Ribeiro Azevedo, professora da USP, a Universidade de São Paulo. “O Teatro Bela Vista teve um papel crucial na modernização do teatro brasileiro, com uma proposta de valorizar autores nacionais.”

A digitalização do acervo foi iniciativa de Sylvia, com apoio da Grifo Projetos Históricos e Culturais e financiamento do ProAC, o Programa de Ação Cultural.

Sylvia trabalhou ao lado dos historiadores Silvana Goulart e Pedro Carvalho para organizar e catalogar os materiais. “Hoje, Sérgio Cardoso precisa ser reapresentado. Ele foi um ator imenso, um verdadeiro intérprete shakespeariano”, afirma Silvana, diretora da Grifo.

O processo de digitalização levou cerca de um ano e envolveu higienização, conservação e catalogação dos itens. Sylvia cuidou do acervo que estava na casa de Nydia, que faleceu em 2015.

Levaram algum tempo até que Sylvia e seu filho revisassem os documentos, carregados de memórias. “Fiquei impressionada com a quantidade de coisas que encontramos e com o cuidado que ela teve para preservar tudo, desde textos montados no TBC, no Bela Vista, na TV Cultura, até fitas de áudio das peças.”, comenta Sylvia.

O Teatro Sérgio Cardoso, localizado no Bela Vista, ocupa o mesmo endereço desde 1956, quando foi inaugurado como Teatro Bela Vista. A peça de estreia foi “Hamlet”, com Sérgio Cardoso no papel principal.

Naquela época, era raro atores construírem seu próprio espaço cênico. O casal deixou a Companhia Dramática Nacional, no Rio de Janeiro, para formar a própria companhia e realizar seu sonho de ter um teatro próprio. Sylvia, que tinha apenas quatro anos na inauguração, cresceu nesse ambiente.

Durante uma caminhada, Sérgio e Nydia avistaram uma construção abandonada, o antigo Cine Teatro Esperia, e decidiram transformá-lo em um teatro. Após negociações, alugaram o espaço e abriram a Empresa Bela Vista para a reforma. Em dois anos, inauguraram um teatro moderno e espaçoso numa São Paulo carente de espaços culturais.

Entre os registros do acervo, destaca-se a montagem de “Quarto de Despejo”, adaptação de Edy Lima do livro de Carolina de Jesus, com Ruth de Souza no papel principal. Carolina de Jesus, que assistiu à peça, comentou: “Fiquei emocionada ao ver a cópia fiel da minha vida na favela.” O programa da peça ressaltava a importância da denúncia social presente no livro.

O acervo também inclui programas de peças, textos com anotações de Sérgio Cardoso e croquis de figurinos. “Temos, pelo menos, um documento de cada uma das 64 peças montadas no Teatro Bela Vista”, explica Pedro Carvalho, da Grifo.

Após o divórcio, em 1960, Sérgio deixou São Paulo, e Nydia assumiu a administração do teatro. Ela enfrentou resistência para permanecer à frente do espaço, mas contou com o apoio da classe teatral. Nydia criou a Companhia Nydia Licia, que realizou produções próprias e coproduções. Mais tarde, dedicou-se à escrita, publicando biografias de artistas e ganhando o Prêmio Jabuti pelo livro sobre Raul Cortez.

Apesar das dificuldades, Nydia conseguiu manter o teatro até o fim do contrato de 15 anos, mas, ao deixar o espaço, os proprietários consideraram demolir o edifício para construir um mercado. Nydia mobilizou-se para impedir a demolição, e, com apoio do Conselho de Cultura, o governo de São Paulo adquiriu o imóvel, transformando-o em patrimônio público.

Quando o novo teatro foi inaugurado em 1980, já com o nome de Sérgio Cardoso, ele havia falecido. Nydia sugeriu a homenagem ao ex-marido, reconhecendo a importância dele para a cena teatral brasileira. “Mesmo separados, eles mantinham uma relação muito especial. Havia um entendimento entre eles”, relembra Sylvia.

Em 2020, no aniversário de 40 anos do teatro, a sala principal foi renomeada como Sala Nydia Licia, reconhecendo a luta de Nydia pela preservação do espaço. Agora, Sylvia faz um apelo para que outras memórias culturais sejam preservadas, destacando a importância de manter registros físicos.

“Talvez a geração dos meus pais e as poucas seguintes sejam as últimas a ter algo físico para mostrar, como textos escritos e rabiscados. Peço a quem possui acervos que os preserve, pois serão os últimos que teremos em formato físico.”

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