O novo racismo

o edital  tem caráter nacional e vai selecionar  organizações, grupos e coletivos negros que atuam na educação, implementam ou fomentam estratégias de enfrentamento ao racismo (Foto: Divulgação)

Lidiane Gomes Pereira

Graduada em Filosofia pela UFPE

Recentemente, navegando nas redes sociais me deparo com a seguinte frase: o novo racismo é fingir que não existe racismo. A frase atribuída ao psicólogo e ativista norte americano Umar Ifatunde me fez pensar se no contexto brasileiro, essa afirmação faria algum sentido.

Lélia Gonzalez desde as décadas de 70 e 80 chamava atenção para o “racismo à brasileira” como aquele que se volta contra pessoas negras ao mesmo tempo em que diz não fazê-lo, tendo como principal característica a dissimulação. Num exemplo prático e mais atual, é aquele que diz que “só existe uma raça, a humana”, “somos todos iguais”, utilizando-se da biologia como argumento para tentar desvalidar o que efetivamente ocorre dentro das esferas sociais. Na prática, sabemos que cor de corpos são questionados e desvalidados dentro de espaços de poder. Geralmente, os mesmos que acabam sendo “confundidos” com vendedores quando estão fazendo compras num estabelecimento; como garçomgarçonete se estão num momento de lazer num bar ou restaurante. São esses mesmos corpos que são confundidos com bandidos, traficantes, custando-lhes em muitos casos a própria vida. Somente numa cor de corpos, segurar um guarda-chuva pode ser “confundido” com segurar um fuzil. Inúmeras são as situações e os experimentos sociais que nos mostram que dentro do imaginário social brasileiro, o corpo negro é atrelado a pobreza, subalternidade, inferioridade, bestialidade, feiura, entre outras características negativas. Isso revela o que hoje conhecemos como racismo estrutural. Mas como essas ideias se cristalizam no imaginário social? Qual a origem do racismo? Voltemos na história.

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De acordo com Anibal Quijano foi na modernidade europeia (séc. XVII e XVIII) que filósofos como Locke, Spinoza, Descartes, dentre outros elaboraram e formalizaram um modo de produção de conhecimento que se alinhavam com as necessidades cognitivas do capitalismo; propriedade dos recursos de produção, medição, controle, objetivação do que pode ser conhecido. A própria noção de sujeito e tudo o que se conhece através dele, tem caráter e origem no eurocentrismo. O filósofo e psicanalista Érico Andrade em sua obra Negritude sem Identidade se debruça de forma minuciosa sobre a construção da identidade do sujeito moderno e como a formação de um sujeito racional a partir de Descartes serviu ao discurso filosófico para traçar critérios identitários como uma espécie de fronteira, dividindo, demarcando, separando os humanos, encontrando em certos corpos, “propriedades que indicam um uso apenas acidental da razão” (ANDRADE, 2023). Érico é cirúrgico ao trazer o pensamento racista de filósofos modernos como Kant, Hegel, Voltaire, Hume, Locke e Montesquieu, afirmando que o esforço filosófico da modernidade será o de conferir justificativas para que o racismo seja efetivo e se espalhe pelo globo. É através desse esforço que o racismo ganhará sua dimensão epistêmica.

Ciência e filosofia trabalharam para a consolidação do racismo. Um exemplo clássico é o do médico norte americano Samuel George Morton. Ele é considerado o pai do racismo cientifico. Com base nos seus estudos de anatomia do século XIX, particularmente, craniologia, afirmava que quanto maior o crânio e o cérebro, maior a inteligência e a capacidade de evolução, sobrevivência, liderança e etc. É curioso o fato de que ele só achava os crânios europeus e americanos maiores que os demais crânios de outras etnias como africanos, tasmanianos, malaios, mongóis, indígenas etc. Estudos desta natureza foram usados como “provas” para legitimar uma relação de hierarquia entre as raças.

Quijano faz questão de evidenciar que o eurocentrismo não é apenas a perspectiva cognitiva dos europeus, mas também de um conjunto de pessoas educadas sob a sua hegemonia. O conceito de colonialidade é justamente a manutenção dessa lógica das relações coloniais nos saberes e modos de vida de países que foram suas colônias. 

Aqui no Brasil, Lélia Gonzalez vai nos dizer que a violência dos colonizadores passou por adaptações, disfarçando-se e ancorando-se em ideologias que legitimavam sua “verdadeira superioridade.” O racismo como ferramenta de dominação e exploração, responsável por manter negros e indígenas na condição das classes mais exploradas, se alicerça numa prática ideológica muito eficaz, a ideologia do branqueamento, isto é, a crença de que o sangue branco seria superior e iria clarear as demais etnias, através do processo de miscigenação. Acreditava-se que isso promoveria um avanço genético e cognitivo, podendo ainda, depois de várias gerações, promover o desaparecimento completo das pessoas não brancas (darwinismo social).

Houve em nosso país um projeto político de branqueamento da população. Com o fim do sistema escravista em 13 de maio 1888, as pessoas negras ficaram entregues à própria sorte. Não houve um projeto de inserção social e econômica, esse abandono fazia parte do projeto político do país que queria se livrar dessa população. A ideia de que os não-brancos, representavam um fator de atraso para a nação brasileira era bastante presente, não sendo, portanto, de interesse político promover essa integração. Por esta ótica, faria muito mais sentido o incentivo à imigração europeia. Os imigrantes ganhavam generosos pedaços de terra para povoar e contribuir para o desenvolvimento do país. Diante desta distribuição desigual de oportunidades, podemos ver claramente aquilo que o Achille Mbembe (2019) chama de necropolítica, ou seja, o poder que o Estado tem de ditar quem pode viver e quem deve morrer.  

Outra narrativa fantasiosa que negava a existência do racismo era o mito da democracia racial. Este mito tem como principal pressuposto o processo de miscigenação e integração entre as diferentes etnias. Como não houve uma segregação racial explicita através de lei, a exemplo dos EUA, essa aparente harmonia entre povos, disseminou entre os brasileiros e vendeu a ideia para outros países de que não existia racismo no Brasil.

O projeto de embranquecimento de nossos corpos claramente deu errado. No entanto, penso que o “embranquecimento” de nossas mentes, tenha tido um pouco mais de sucesso. Os meios de comunicação de massa entre outros aparelhos ideológicos reproduziam e perpetuavam a crença de superioridade branca, como bem pontuou Lélia Gonzalez. Isso provocou danos e fragmentação na identidade racial, muitos deles irreversíveis, diria. O ódio de sua autoimagem, baixa estima, insegurança, desejo de embranquecer, negação da própria raça e cultura, ansiedade, depressão, entre outros efeitos nocivos. O sociólogo Jessé Souza vai dizer numa entrevista que “a única maneira de verdadeiramente explicar o racismo é compreendermos o que ele destrói nas pessoas.” No poema de Victoria Santa Cruz intitulado “Me gritaram negra” podemos observar os efeitos corrosivos do racismo, mas também podemos visualizar uma tomada de consciência emancipatória da negritude. Em algumas de suas linhas podemos ler: “E odiei meus cabelos e meus lábios grossos e mirei apenada minha carne tostada. E retrocedi. (…) Negra sou. De hoje em diante não quero alisar meu cabelo. Não quero. (…) Negra sou.”

É por isso que existe o dia da consciência negra, porque a negritude é uma tomada de consciência histórica e porque as desigualdades, fruto do racismo, continuam existindo e se atualizando. O racismo ganha novas “roupagens”, novas formas na linguagem e preserva, a meu ver, “sua essência” ao deslegitimar sua real existência.

O post O novo racismo apareceu primeiro em Folha BV.

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