Nos últimos dias, a crise de reputação da Cacau Show explodiu como uma bomba-relógio na timeline dos profissionais de comunicação. Mas, mais do que um estudo de caso sobre o que a marca fez ou deixou de fazer, o episódio escancara um ponto mais profundo: a dificuldade das empresas — mesmo as grandes, amadas e premiadas — em transformar posicionamento em cultura viva.
Em vez de figurar nas notícias por uma nova campanha de Natal ou por abrir mais uma loja em tempo recorde, a marca passou a ocupar o noticiário por denúncias feitas por ex-franqueados e ex-funcionários. As acusações, que estão sob apuração e ainda sem comprovação judicial, mencionam práticas como constrangimento, centralização de poder e uma cultura interna descrita como sufocante.

Independentemente dos desdobramentos legais, o caso já se impôs como símbolo. Não como um veredito, mas como espelho.
O que essa situação revela — com brutal clareza — é o que acontece quando o discurso de uma marca se distancia demais da experiência interna. Quando o que é dito no comercial não ecoa nos corredores. Quando o propósito que encanta o consumidor não encontra sustentação nas relações do dia a dia.
Esse é o ponto central. E o primeiro plot twist:
Marcas admiradas também entram em crise.
E, quando entram, o impacto simbólico é ainda maior. Quanto mais afeto se acumula em torno de uma marca, mais alto é o tom da decepção quando algo soa desalinhado.
Mais do que um caso isolado, essa crise reflete um fenômeno recorrente e inquietante no branding contemporâneo: o que acontece quando a narrativa sedutora da marca não se sustenta nos bastidores? Quando o discurso público vira dissonância interna?

A confiança, como um castelo de cartas, leva anos para ser construída — e pode ruir com um único hiato simbólico. Segundo o Edelman Trust Barometer 2024, 71% das pessoas esperam que empresas tenham posicionamentos claros sobre cultura, ética e impacto social. E 80% delas perdem a confiança ao perceberem desalinhamento entre discurso e prática.
O segundo plot twist:
Nem toda cultura forte é uma cultura saudável.
E nem toda liderança carismática garante segurança psicológica.
Quando a figura do fundador se torna onipresente e a narrativa da empresa gira apenas em torno de seu estilo de liderança, o branding vira palco e os bastidores perdem visibilidade. Nesse cenário, o propósito tão bem roteirizado pode se transformar em peso para quem vive a rotina da empresa.
Isso não é exclusividade da Cacau Show. Uber, WeWork e outras marcas já protagonizaram essa dinâmica. Sempre que a cultura interna vira doutrina — e não diálogo — o risco reputacional se instala no DNA.

Não se trata de julgar uma marca. Trata-se de refletir sobre sintomas que afetam organizações que crescem sem cuidar de sua governança simbólica. O problema não é o sucesso, mas o que se deixa de ver quando ele se torna inquestionável.
Terceiro plot twist:
O silêncio institucional também comunica.
Quando ex-colaboradores relatam medo de falar, quando os canais de escuta não funcionam, quando a cultura do “não questione” se instala, o que era admiração se transforma em inquietação. Segundo o relatório Kantar BrandZ Global 2023, empresas que mantêm alto alinhamento entre propósito, cultura e prática crescem até 2,5 vezes mais rápido. Coerência não é luxo de branding — é estratégia de negócio.
Marcas vivem num intervalo simbólico entre o que vendem e o que toleram. Quando esse intervalo se alarga demais, a reputação deixa de ser um ativo e passa a ameaçar a própria existência da organização.
A crise da Cacau Show é um espelho. Em tempos de transparência radical, onde tudo é visto e cobrado, o maior erro pode não estar nas práticas em si, mas na ausência de mecanismos internos que freiem o desalinhamento sistêmico.
E aqui está uma frase dura, mas necessária: o lugar mais estratégico para ouvir uma marca é o corredor — não o palco.
Marcas não adoecem de repente. Elas adoecem no silêncio. Nos cafés da manhã onde os temas difíceis são evitados. Nos palcos onde se repete o roteiro oficial. E quem não escuta esse ruído, mais cedo ou mais tarde, terá que se explicar em horário nobre.
O que vem agora — para a Cacau Show ou qualquer marca em crise — não é simples. Mas é possível. Crises, quando reconhecidas, podem se transformar em chances de reinauguração simbólica.
A Uber viveu isso em 2017. Após anos de crescimento acelerado e um mito fundador inquestionável, a empresa entrou em parafuso. Travis Kalanick, o CEO, foi afastado, a cultura foi reconfigurada, e mecanismos de ética independentes foram implantados. Só assim o ciclo de reparação começou.
Se a Cacau Show — ou qualquer outra marca — quiser preservar mais do que a casca do seu branding, vai precisar de coragem.
E essa crise nos lembra: branding não é estética, nem playground de slogans. É sistema.
Alinhamento entre comunicação, cultura, liderança e operação.
Se a marca é feita por pessoas e para pessoas, como se diz, a gestão de crise não pode se resumir a frases neutras de PR. Ela exige presença, escuta ativa, vulnerabilidade estratégica e, sobretudo, coerência.
Coerência não é moralismo. É inteligência de longo prazo.
Coerência entre o que se diz e o que se vive.
Entre o que se vende e o que se sustenta.
Entre o propósito declarado e o processo praticado.
Esse caso não serve de alerta só para os gigantes. Ele também fala com marcas médias, locais, pessoais.
A cultura que você constrói dentro da empresa é o que vai aparecer quando a crise bater. E nesse momento, é o branding — não o marketing — que assume o protagonismo.
Porque visibilidade sem verdade vira ruído.
Se a Cacau Show quiser sair do outro lado com algo mais do que a casca preservada, vai precisar de algo raro:
coragem com estratégia.
Coragem para revisar a cultura.
Coragem para descentralizar o poder.
Coragem para escutar sem retaliar.
Coragem para abrir janelas onde antes só havia espelhos.
Coragem, sobretudo, para não responder com notas oficiais — mas com humildade.
Crises são duras, mas também são chances de mostrar quem se é.
É quando a liderança comunica menos com palavras — e mais com atitudes.
É quando o posicionamento deixa de ser discurso e vira bússola.
A Cacau Show vai se realinhar e sair dessa. Mas talvez saia com uma clareza amarga:
A reputação de uma marca não se constrói só com campanhas emocionantes —
mas com relações sustentáveis.
Inclusive com quem está por trás do balcão.
E com a lição de que não se trata de voltar ao que era,
mas de evoluir para o que se pode — e se deve — ser.