Relembre o caso do juiz que criou identidade de nobre inglês em farsa que durou 45 anos

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São Paulo, 21 – O juiz aposentado José Eduardo Franco dos Reis, do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP), que se apresentava como descendente da nobreza britânica e viveu 45 anos sob a falsa identidade de Edward Albert Lancelot Dodd Canterbury Caterham Wickfield, foi denunciado pelo Ministério Público de São Paulo sob as acusações de usar durante todo o exercício da magistratura documentos falsos e cometer o crime de falsidade ideológica.

Edward Albert Lancelot Dodd Canterbury Caterham Wickfield viveu nessa situação por quase 45 anos até que no dia 3 de outubro de 2024 foi pedir uma segunda via da carteira de identidade no Poupatempo da Sé. O problema é que, naquele ano, os registros de digitais do Instituto de Identificação Ricardo Gumblenton Daunt (IIRGD) já haviam sido digitalizados e seus dados passaram a fazer parte do Sistema Automatizado de Identificação Biométrica (AFIS/ABIS).

O AFIS/ABIS emitiu um alerta. As digitais do juiz eram as mesmas de outra pessoa, José Eduardo Franco dos Reis.

Ao requerer a segunda via de sua identidade, o juiz exibiu uma certidão de nascimento falsa, como se Wickfield tivesse nascido em 11 de março de 1958. Com o alerta do AFIS/ABIS, a Delegacia de Combate a Crimes de Fraude Documental e Biometria instaurou uma investigação preliminar na qual constatou a duplicidade de identidade e a criação da pessoa fictícia Edward Albert Lancelot Dodd Canterbury Caterham Wickfield.

Juiz alega transtorno psiquiátrico

O juiz aposentado alega ter diagnóstico de Transtorno de Personalidade Esquizoide (TPE). A defesa juntou o laudo psiquiátrico no processo em que ele responde por uso de documento falso e falsidade ideológica.

Os advogados Alberto Toron e Renato Marques Martins pedem que a Justiça autorize o chamado “incidente de insanidade” – procedimento para verificação, através de perícia médica, da saúde mental do réu. Com isso, ele pode ser declarado inimputável.

Segundo o documento, o magistrado adotou a identidade falsa como uma maneira de “começar uma vida nova” após um “drama existencial”. Teria sido uma resposta a um “quadro psicológico complexo, motivado por frustração pessoal”. A informação foi divulgada pelo portal G1 e confirmada pelo Estadão

A defesa também pede que o Ministério Público considera um Acordo de Não Persecução Penal (ANPP) – instrumento jurídico em que o réu confessa o crime e se compromete a cumprir uma série de cláusulas, como o pagamento de multa e a prestação de serviços comunitários, para não responder ao processo criminal.

Os advogados negam que o magistrado tenha usado a identidade falsa para cometer crimes ou prejudicar terceiros.

Chá das cinco, tweed e treino para perder sotaque

Segundo pessoas que conviveram com o magistrado ouvidas pelo Estadão, ele tinha por hábito beber chá pontualmente às 17 horas e costumava ser visto com blazers de tweed.

Quando questionado, dizia ser filho de pais britânicos. Segundo os relatos, Edward dizia que usava o metrô para se deslocar ao Fórum João Mendes porque estava acostumado com o transporte público na Inglaterra. Também afirmou que fazia tratamento fonoaudiológico para diminuir o sotaque britânico.

Contemporâneo de Alexandre de Moraes

Em 1988, o acusado entrou na Faculdade de Direito do Largo São Francisco da Universidade de São Paulo (USP). Lá foi contemporâneo de Alexandre de Moraes, hoje ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), que estava então no terceiro ano do curso. Em 1996, Wickfield foi aprovado no concurso para a magistratura paulista. Aposentou-se como titular da 35.ª Vara Cível de São Paulo, no Fórum João Mendes, em 2018.

Ao ser aprovado no concurso, ele concedeu entrevista para uma reportagem sobre os aprovados no exame. Contou que era nascido no Brasil, mas descendia de nobres ingleses. Afirmava ter morado até os 25 anos na Inglaterra, onde dizia ter estudado matemática e física.

O então futuro magistrado – ele ia trabalhar em Limeira, no interior do Estado – afirmava que, ao voltar a São Paulo, decidira estudar Direito na USP, embora seu avô tivesse sido juiz no Reino Unido. E garantia que “o precedente familiar” não o ajudou no concurso. “Conheço pessoas com um passado muito tradicional que não passaram.”

Juiz ganhou R$ 3,4 milhões após aposentadoria

O magistrado aposentado recebeu R$ 4,8 milhões desde que se aposentou, em março de 2018. O valor corresponde à remuneração bruta no período. Com os descontos, os subsídios líquidos alcançaram R$ 3,4 milhões.

Desde dezembro do ano passado, os contracheques do magistrado estão acima dos R$ 100 mil, mesmo sem exercer a jurisdição. O valor ultrapassa o teto constitucional, de R$ 46,3 mil, que corresponde à remuneração dos ministros do STF.

Em todo o período, o contracheque mais alto foi o de dezembro de 2024, que bateu R$ 246,3 mil. O subsídio-base foi inflado por “direitos eventuais” – penduricalhos que não entram no cálculo do teto, como terço de férias, indenização e antecipação de férias, gratificação natalina, pagamentos retroativos e Parcela Autônoma de Equivalência. Todos os pagamentos estão previstos em legislações específicas e resoluções administrativas.

Estadão Conteúdo

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