Spike Lee troca o Japão de Kurosawa pelo Brooklyn em novo ‘Highest 2 Lowest’

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CANNES, FRANÇA (FOLHAPRESS)

“Uma nova parada de Spike Lee”, como dizem os créditos iniciais de todos os seus filmes, chegou ao Festival de Cannes. Mas não tão nova assim. “Highest 2 Lowest”, afinal, é uma refilmagem do mestre japonês Akira Kurosawa.

Sessenta e dois anos separam o novo longa, exibido no evento em sessão especial, de “Céu e Inferno”. Mesmo que a premissa seja a mesma, Lee subverteu por completo o original, numa curiosa releitura que deixa Yokohama para trás a favor do Brooklyn, em Nova York.

“Eu sou um cinéfilo, sou professor de cinema, e eu gosto de incorporar esse amor pelo cinema ao meu trabalho. Muitos dos elementos que uso vêm desse lugar”, afirmou o diretor de longas como “Faça a Coisa Certa” e “Infiltrado na Klan”, em conversa com jornalistas numa manhã chuvosa e fria em Cannes, nesta terça-feira (20).

“Highest 2 Lowest” tem produção da A24 e da Apple Original Films, e sua estreia mundial está prevista para setembro. A trama segue acompanhando um empresário que enfrenta um complicado dilema moral quando o filho de seu motorista é sequestrado no lugar do seu, por engano. Se quiser manter o garoto vivo, ele deve pagar um resgate milionário, que o levará à falência.

A insossa indústria de sapatos de “Céu e Inferno” é chutada para fora da nova trama, que põe seu protagonista como executivo de uma gravadora, uma espécie de Quincy Jones dos anos 2000, responsável por lançar os maiores artistas da música negra americana do período.

Na primeira parte do filme, Lee parece fazer uma paródia de Kurosawa, recorrendo a uma trilha de violinos pesada e a diálogos sofridamente emocionais. É o momento em que se mantém mais fiel ao roteiro original. Quando o sequestrador entra em cena, porém, ele subverte o próprio filme, adotando música e ritmo ágeis e inventivos.

Denzel Washington assume o papel que já foi de Toshirô Mifune, enquanto Jeffrey Wright dá mais profundidade e personalidade ao motorista antes interpretado por Yutaka Sada. Mais uma vez, céu e inferno, alto e baixo, se contrapõem. David King, o rei da indústria fonográfica, vive numa luxuosa cobertura, enquanto o sequestrador se esconde num porão.

“Trabalhar com essa dupla [Lee e Washington] tão icônica para os Estados Unidos e para o cinema era algo que eu queria muito”, diz Wright sobre sua primeira colaboração com o cineasta. “No nosso primeiro encontro nós fomos ao Museu do Brooklyn, para o qual o Spike tinha emprestado sua coleção, e isso diz muito sobre ele e o seu cinema. Ele é um dos guardiões da cultura negra nos Estados Unidos.”

Sobre o dilema moral no centro de “Céu e Inferno”, Wright diz que seus temas continuam latentes, numa sociedade em que “tudo e todos estão à venda, em que toda relação é transacional”. “Nem tudo gira em torno de dinheiro. Precisamos fazer o que o Spike faz em seus filmes, recuperar o amor”.

Washington não esteve presente na conversa com jornalistas, pois precisou deixar Cannes logo após receber uma Palma de Ouro honorária surpresa, na sessão de gala desta segunda. Foi com o ator que o projeto surgiu, após circular por anos na indústria. Washington viu nele a oportunidade perfeita para se reunir com Lee pela primeira vez em 18 anos, desde “O Plano Perfeito”.

O espírito nova-iorquino do filme levou a uma pergunta sobre o apagão de produções audiovisuais na cidade e em Los Angeles, com um êxodo de sets de filmagem para outras cidades e países que Donald Trump, em teoria, quer resolver com sua proposta de taxar filmes gravados fora dos Estados Unidos.

A situação, porém, é mais complexa do que a Casa Branca faz parecer, reiterou Wright, que disse que a vontade de apoiar a indústria deve ser resultado de liderança, não de motivações pessoais ou ideologia política. “Qual é a palavra que você usou?”, brincou Lee, em referência ao termo “liderança”, se escondendo sob o capuz de seu agasalho após tirar sarro de Trump.

Wright aproveitou a menção a Nova York para protagonizar um momento bem-humorado com Lee, que chegou a Cannes com seu carisma habitual. “Ninguém captura Nova York como Spike”, disse o ator.

“Scorsese!”, gritou o diretor no microfone. “Há uma conexão entre quem ele é e o que Nova York é, ninguém faz isso como o Spike”, continuou Wright. “Eu paguei ele para dizer isso”, encerrou Lee.

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