
O presidente dos EUA, Donald Trump, diz que está ocorrendo um genocídio na África do Sul — alegação que um juiz rejeitou, classificando como ‘imaginária’. Integrantes do primeiro grupo de sul-africanos brancos que receberam status de refugiados nos EUA em evento de boas-vindas no Aeroporto Internacional de Dallas
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O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, concedeu status de refugiado a membros da comunidade afrikaner da África do Sul, alegando que um genocídio estava acontecendo no país.
Na segunda-feira (12), 59 deles chegaram aos EUA após receber asilo.
O governo sul-africano permitiu que a embaixada americana analisasse seus pedidos dentro do país, e autorizou que o grupo embarcasse em um voo fretado no principal aeroporto internacional de Joanesburgo — cenas que não são normalmente associadas a refugiados que fogem de perseguição.
Quem são os afrikaners?
O site South African History Online resume sua identidade destacando que “os afrikaners modernos descendem principalmente de europeus ocidentais que se estabeleceram no extremo sul da África em meados do século 17”.
Uma mistura de colonos holandeses (34,8%), alemães (33,7%) e franceses (13,2%), eles formaram um “grupo cultural único” que se identificou “completamente com o solo africano”, acrescenta o South African History Online.
Seu idioma, o africânder, é bastante semelhante ao holandês.
Mas, à medida que fincavam suas raízes na África, os afrikaners, assim como outras comunidades brancas, forçaram os negros a deixar suas terras.
Os afrikaners também são conhecidos como bôeres — que, na verdade, significa fazendeiro —, e o grupo ainda está intimamente associado à agricultura.
Em 1948, o governo da África do Sul, liderado por afrikaners, introduziu o apartheid, levando a segregação racial a um nível mais extremo.
Isso incluía leis que proibiam casamentos entre pessoas de diferentes raças, reservavam muitos empregos qualificados e semiqualificados para os brancos e forçavam os negros a viverem nas chamadas “townships”.
Eles também foram privados de uma educação decente — o líder africâner Hendrik Verwoerd teria dito, de forma infame, na década de 1950 que “os negros nunca deveriam ter acesso às oportunidades da educação. Eles deveriam saber que sua posição na vida é ser cortadores de lenha e carregadores de água”.
O domínio dos afrikaners na África do Sul terminou em 1994, quando os negros foram autorizados a votar pela primeira vez em uma eleição nacional, levando Nelson Mandela e o partido Congresso Nacional Africano (CNA) ao poder.
Os afrikaners representam atualmente cerca de 4% da população do país — 2,5 milhões de um total de mais de 60 milhões de habitantes.
Está sendo cometido um genocídio?
Nenhum dos partidos políticos da África do Sul — inclusive os que representam os afrikaners e a comunidade branca em geral — afirmou que há um genocídio na África do Sul.
Mas tais alegações têm circulado entre grupos de direita há muitos anos, e Trump também se referiu a um genocídio durante seu primeiro mandato.
As alegações resultam de ataques a fazendeiros brancos ou informações enganosas que circulam online.
Em fevereiro, um juiz sul-africano descartou a ideia de genocídio como “claramente imaginária” e “irreal”, ao decidir sobre um processo de herança envolvendo a doação de um rico benfeitor ao grupo supremacista branco Boerelegioen.
A África do Sul não divulga dados de crimes com base em raça, mas as estatísticas mais recentes revelaram que 6.953 pessoas foram assassinadas no país entre outubro e dezembro de 2024.
Deste total, 12 foram mortas em ataques a fazendas. Das 12 vítimas, uma era um fazendeiro, enquanto cinco eram moradores de fazendas e quatro eram funcionários, que provavelmente eram negros.
O que Trump e Musk disseram?
Ao defender sua decisão de conceder status de refugiado aos afrikaners, Trump disse que estava ocorrendo um “genocídio” na África do Sul, que os agricultores brancos estavam sendo “brutalmente assassinados”, e que suas “terras estavam sendo confiscadas”.
Trump afirmou que não tinha certeza de como poderia participar da cúpula de líderes mundiais do G20, que será realizada na África do Sul no fim deste ano, em um ambiente como esse.
“Não sei como poderemos ir, a menos que essa situação seja resolvida”, acrescentou.
O presidente da África do Sul, Cyril Ramaphosa, disse que é “completamente falso” afirmar que “pessoas de uma determinada raça ou cultura estão sendo alvo de perseguição”.
Referindo-se ao primeiro grupo que se mudou para os EUA, ele afirmou: “Eles estão indo embora porque não querem aceitar as mudanças que estão ocorrendo no nosso país e em nossa Constituição.”
O governo nega que as terras estejam sendo confiscadas dos fazendeiros, dizendo que a lei que Ramaphosa sancionou em janeiro tinha como objetivo reparar a desapropriação de terras que os negros enfrentaram durante o governo da minoria branca.
Mas a lei foi condenada pelo partido Aliança Democrática (AD), o principal aliado de Ramaphosa no governo de coalizão. O AD disse que vai contestar a lei na mais alta corte da África do Sul, por ela ameaçar os direitos de propriedade.
O conselheiro próximo de Trump, Elon Musk, que nasceu na África do Sul, se referiu às “leis racistas de propriedade” do país, alegando que seu provedor de serviços de internet via satélite, Starlink, “não tinha permissão para operar na África do Sul simplesmente porque não sou negro”.
Para operar na África do Sul, a Starlink precisa obter licenças de rede e de serviço, que exigem 30% de propriedade de grupos historicamente desfavorecidos.
Isso se refere principalmente à população majoritariamente negra da África do Sul, que foi excluída da economia durante o sistema racista do apartheid.
A Autoridade Independente de Comunicações da África do Sul (Icasa, na sigla em inglês) — órgão regulador dos setores de telecomunicações e radiodifusão — informou à BBC que a Starlink nunca enviou um pedido de licença.
Musk também acusou o Combatentes pela Liberdade Econômica (CLE), o quarto maior partido da África do Sul, de “promover ativamente” o genocídio por meio de uma música que canta em seus comícios.
Por que um partido político canta sobre atirar nos bôeres?
A música associada ao líder do CLE, Julius Malema, é Shoot the Boer, Shoot the farmer (“Atire no bôer, atire no fazendeiro”), que ele canta em comícios políticos.
Os grupos de lobby africâner tentaram proibir a canção, alegando que ela era altamente inflamatória e constituía discurso de ódio.
No entanto, a Suprema Corte de Apelação da África do Sul decidiu que Malema tem o direito de cantar a letra — popularizada pela primeira vez durante a luta contra o apartheid — em comícios políticos.
O tribunal afirmou que uma “pessoa razoavelmente bem informada” entenderia que quando “canções de protesto são entoadas, mesmo por políticos, as palavras não devem ser entendidas literalmente, nem o gesto de atirar deve ser entendido como um chamado às armas ou à violência”.
Em vez disso, a música era uma “forma provocativa” de promover a agenda política do CLE — que era acabar com a “injustiça econômica e fundiária”.
O grupo de lobby AfriForum entrou com um recurso contra a decisão, mas a mais alta corte da África do Sul se recusou a aceitar o processo, dizendo que tinha poucas chances de sucesso.
Em 2023, o ex-presidente da África do Sul, Thabo Mbeki, pediu a Malema que parasse de cantar a música, dizendo que não era mais politicamente relevante, uma vez que a luta contra o apartheid havia terminado.
O CNA diz que não canta mais a canção, mas não pode “determinar a outros partidos políticos o que eles devem cantar”.
A maioria dos afrikaners quer se mudar para os EUA?
Alguns afrikaners veem o presidente dos EUA, Donald Trump, como um aliado
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Não parece ser o caso.
Em março, um grupo empresarial disse que cerca de 70 mil afrikaners — de uma população estimada em 2,5 milhões — haviam manifestado interesse em se mudar para os EUA após a oferta de Trump.
Na segunda-feira (12/5), a embaixada americana na África do Sul divulgou uma declaração esclarecendo os critérios para o reassentamento, dizendo que abrangia pessoas de qualquer minoria racial, não apenas afrikaners, que pudessem citar um incidente de perseguição no passado ou medo de perseguição no futuro.
O censo mais recente da África do Sul, realizado em 2022, mostra que os coloureds (termo usado oficialmente para pessoas de origem racial mista) são a maior minoria, representando 8% da população. Eles são seguidos por pessoas brancas, incluindo afrikaners, com 7%, e por asiáticos com 3%.
Após a oferta de Trump, o grupo de lobby Afrikaner Solidarity publicou um artigo em seu site com o título: “Dez razões históricas para permanecer na África do Sul”.
No parlamento, na semana passada, o líder do partido de direita Frente da Liberdade Plus disse que eles estavam comprometidos com a África do Sul.
“Somos vinculados à África e vamos construir um futuro para nós e nossos filhos aqui”, afirmou Corné Mulder.