A culpa que ninguém vê

old woman confronting alzheimer disease

Nesta semana, atendi um caso que me tocou profundamente — e, infelizmente, não é raro. Uma idosa institucionalizada em outro estado foi levada ao hospital com um quadro agudo, passou a noite inteira acompanhada por uma profissional do residencial geriátrico onde vive e retornou estabilizada no dia seguinte. Nenhum parente a acompanhou. Nenhum.

A neta, moradora do Distrito Federal, inconformada, me escreveu pedindo orientações. Queria brigar com a mãe. Estava furiosa. “E se minha avó tivesse morrido sozinha?”, questionou. “Como é que minha mãe teve coragem de não ir?”

Respirei fundo e respondi o que sei — por vivência e por ofício: as dinâmicas familiares são um universo à parte. Não há resposta única, nem solução simples.

É muito difícil para a geração do meio — os filhos que cuidam dos pais com doenças graves, como demência — sustentar o cuidado constante, manter o vínculo afetivo e ainda lidar com a culpa. Sim, culpa. Culpa por não conseguir cuidar em casa. Culpa por não suportar o convívio com alguém que já não reconhece ninguém. Culpa por ter levado a pessoa idosa para uma instituição. Culpa por preferir que profissionais façam aquilo que eles próprios não conseguem. E também a culpa herdada: relações marcadas por silêncios, rigidez, autoritarismo e, muitas vezes, ausência de afeto. Há filhos que, por mais incrível que pareça, jamais foram abraçados com ternura pelos pais. Cresceram achando que carinho era sinônimo de desrespeito.

No Brasil, cerca de 1% da população idosa vive em instituições de longa permanência — as ILPIs. Uma porcentagem que parece pequena, mas representa mais de 160 mil pessoas. A maioria não está ali por abandono, como tanto se repete, mas porque houve esgotamento físico, mental e emocional nas tentativas de cuidar dentro de casa. Tentativas repletas de noites em claro, decisões difíceis, brigas familiares e resistência por parte do próprio idoso, que muitas vezes não aceita ajuda, se revolta, agride, ou simplesmente se recusa a colaborar.

Alguns idosos, especialmente nos quadros demenciais, perdem a noção da realidade. Outros, mesmo lúcidos, não toleram a dependência e reagem com hostilidade. O idoso não quer ser visto como idoso. Não quer perder sua autoridade. Não quer ser chamado de “dependente”. E é duro — para todos — encarar essa realidade. Já ouvi inúmeras vezes, como profissional: “Eu preferia morrer”. Não é uma frase incomum. É a dor de perder a si mesmo. De ver o corpo falhar, a mente desacelerar, a vida encolher.

De fora, é fácil julgar. Mas cada história familiar é feita de raízes profundas, decisões silenciosas e dores não elaboradas. Muitos pais criaram seus filhos sob o peso da obrigação, não do afeto. E muitos filhos se tornaram cuidadores exaustos, emocionalmente indisponíveis — mesmo querendo ser o contrário.

Cuidar exige mais do que presença. Exige preparo, estrutura, rede de apoio e, acima de tudo, vínculo. E quando o vínculo já chega frágil ou rompido, como reconstruí-lo em meio aos desafios do envelhecimento?

As famílias tentam — e muitas falham. Não por descaso, mas por exaustão. Falta informação, coragem para pedir ajuda, confiança em cuidadores. O mercado é instável, a rotatividade desorganiza qualquer rotina. Os conflitos aumentam. É preciso conciliar trabalho, filhos, casamento e o cuidado de um idoso com demência. Em algum momento, algo vai quebrar. Não há como equilibrar tudo. E a institucionalização surge como o último recurso. Com ela, vem uma culpa silenciosa, que passa a habitar cada visita, cada ausência, cada internação — como essa.

Ir ao hospital, para aquela filha, talvez fosse abrir a porta de emoções que ela preferiu esconder “embaixo do tapete que cobre a alma”. Deixar lá, quietinhas, como feridas que não suportam mais ser tocadas. Como nossos joelhos ralados na infância: cada vez que a casquinha era removida, sangrava de novo.

Nada disso é desumanidade. Pelo contrário — é pura humanidade. A maioria de nós não consegue sustentar todas as dores da vida. Tendemos a evitar o que machuca. Mas a sociedade, apressada, espera que tudo cicatrize como um avião a jato — rápido, eficaz, sem turbulências.

A psicanálise, criada por Freud, nos ajuda a entender. Quanto mais profunda a ferida, mais lenta a cura. É preciso levantar o “tapete da alma”, olhar a sujeira, limpar. Só então, repousá-lo novamente — com paz, e não com culpa. Mas Freud jamais obrigou alguém a tratar-se. Ele acolhia quem procurava ajuda por livre e espontânea vontade. E há quem viva bem com o tapete cobrindo as dores. Não sente falta de ajuda. E não somos nós que vamos julgar. Só Deus sabe o porquê.

Nem mesmo os netos conhecem a fundo a relação entre seus pais e avós. A maioria desconhece, ou sabe de forma distorcida, o que se passou naquele casamento, naquele cotidiano. Afinal, quando você briga com seu cônjuge, corre para contar tudo aos filhos? Claro que não. Não queremos expor a vida real às crianças. E seria injusto fazer isso com os nossos.

A Justiça brasileira reconhece a obrigação dos filhos de prover cuidado aos pais idosos, no aspecto financeiro e logístico. Mas não há lei que obrigue o afeto. Um juiz não pode ordenar que um pai ame um filho reconhecido tardiamente — nem que um filho adulto construa um vínculo que nunca existiu. A Justiça não oferece colo. E o fim da vida exige colo. Exige presença, escuta, perdão. Mas tudo isso precisa vir do coração, e não da obrigação.

O fim da vida é um desafio imenso — e único para cada um. Alguns filhos se dedicam, mesmo sem tempo ou tranquilidade, porque ainda há vínculo. Outros se afastam, não por frieza, mas por dor. E há os que simplesmente não sabem como se reaproximar, como recomeçar uma relação, como perdoar ou pedir perdão.

Como profissionais, tentamos construir pontes. Ajudamos o idoso a aceitar ajuda. Ajudamos os filhos a entender que nem sempre dá para salvar tudo. Nem sempre há tempo, clima ou condições para reconstruir relações. E tudo bem.

Dói ver um idoso partir sem despedida. Dói ver um filho se afastar. Mas cada um carrega sua história, seus limites, sua forma de lidar com o fim. E, nesses momentos, só uma decisão importa: olhar para si. Decidir como lidar com o que virá. Estar ou não estar. Ir ou não ir. E encontrar paz com a escolha. Cuidar do que está ao nosso alcance — inclusive da própria saúde mental.

Porque só assim poderemos cuidar — e ser cuidados — com mais leveza, com menos feridas escondidas sob o tapete. E se nada mais for possível, que ao menos se cuide da relação com os próprios filhos. Porque, um dia, seremos nós do outro lado da história. Todos nós.

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