Por Fabrício Gonçalves Ferreira – CRP 01/27623
Enquanto aguardamos a terceira e quarta parte da análise da série Adolescência sob a ótica da psicologia, seguimos explorando as contribuições do professor mestre Fabrício, da Unieuro de Brasília, sobre um tema essencial à prática psicanalítica: a ética envolvida na construção do caso clínico.
Por que um psicanalista escreve? A pergunta, que pode soar simples à primeira vista, é justamente o ponto de partida do artigo Da escuta à escrita: a construção do caso clínico em psicanálise, de Franke e Cardoso da Silva, publicado na revista Psicanálise & Barroco. Ao longo de aproximadamente 20 páginas, os autores propõem uma reflexão profunda sobre o papel da escrita na clínica — não como um mero registro técnico, mas como uma extensão viva da escuta e do pensamento.
Desde Freud, a psicanálise é reconhecida como um método de investigação do inconsciente, mas vai além disso: é também uma via de compreensão do humano, suas culturas, seus sintomas e suas narrativas. Escutar um sujeito é, em certa medida, escutar também os ecos da civilização que ressoam em sua fala. E essa escuta, como destacam os autores, exige ética — uma ética que reconhece o desejo atravessando tanto quem fala quanto quem escuta.
É nesse ponto que a escrita entra em cena. Não se trata de transcrever a sessão palavra por palavra, mas de construir um caso clínico. Escrever é dar forma ao que foi escutado, elaborar sentidos, sustentar hipóteses. É, em muitos casos, apenas no ato da escrita que o analista percebe o que, de fato, estava sendo dito. A escrita, assim, prolonga a escuta e a reinventa.
Essa prática é simultaneamente clínica e investigativa. Na psicanálise, o analista precisa se implicar com o próprio desejo — aquilo que o leva a querer compreender o outro. É nesse movimento que a escrita se transforma em ferramenta metodológica: organiza, metaforiza, aproxima o analista daquilo que foi dito e, principalmente, do que ficou nas entrelinhas. Ela impede que o analista se enrede no sintoma do outro, evitando repetir os sons viciados da fala, e abre espaço para o novo.
Franke e Cardoso da Silva reforçam que o verdadeiro autor da história é o analisando. É ele quem oferece o conteúdo, os enigmas, as perguntas — muitas vezes implícitas — que endereça ao analista. Cabe a este manter o que Nasio (2001), citado pelos autores, chama de “esquema da análise”: uma espécie de cartografia dos conflitos que atravessam aquele sujeito. Mas esse mapa só pode ser traçado com uma escuta precisa e uma escrita ativa.
A construção do caso clínico, portanto, não é uma tarefa solitária. Ela se beneficia do diálogo em grupos de estudo, da supervisão e, principalmente, de uma escuta que não se limite à literalidade. Muitas vezes, tentar transcrever a sessão palavra por palavra empobrece a experiência analítica. O que importa é captar os traços do desejo, os equívocos, as repetições — os pequenos rastros deixados pelo sintoma.
Por fim, a escrita do caso clínico pode ser comparada a um “cotonete para os ouvidos” do analista: limpa a escuta, reposiciona o olhar e possibilita que a análise avance. Porque todo enigma precisa de um mapa — e é na escrita que esse mapa começa a ganhar forma.
Até a próxima.
Referência:
Franke, D., & Cardoso da Silva, J. (2019). Da escuta à escrita: a construção do caso clínico em psicanálise. Psicanálise & Barroco em Revista, 10(2). https://doi.org/10.9789/1679-9887.2012.v10i2.%p